Página alterada da versão escandinava de "Tintim no Congo", feita por Hergé a pedido dos seus editores locais. Morrissey - National Front Disco
"(…) O outro resultado tangível do processo foi a oferta - na já cansativamente habitual bandeja perfumada - de munições aos guerrilheiros anti-sistema, os tais patrulhadores dos patrulhadores que tanto irritam o Comboio Azul e que tanto me irritam a mim, e que rejubilam à menor oportunidade para fulminar a «tirania do politicamente correcto», que, de resto, se assemelha cada vez mais à caricatura imbecil que dela fazem.."
Rogério Casanova (2007) Pastoral Portuguesa
Quando escrevi o post Grandes Vinhetas # 15, a propósito da (recente, mas não mais que reeditada) polémica em torno do álbum "Tintim no Congo", desde logo imaginei (e sobretudo desejei) que um coro de assobios se lhe seguisse. Enganei-me. Recebi apenas dois comentários com um "concordo, mas...", precisamente de dois dos bloggers que mais admiro: o Francisco Curate e o Pedro Olavo Simões. Eu bem me meti com o André Azevedo Alves, o Miguel Portas, o Victor Abreu, o João Távora e o Pedro Guedes, correndo praticamente todo o espectro político, arriscando, nestas coisas dos consensos, acabar como o patinho feio. Mas, nem assim. Ninguém me ligou pevide.
Acabou por ser o improvável Rogério Casanova, do mítico Pastoral Portuguesa, a anunciar que não tinha gostado "mesmo nada deste [desse] post".
A justificação, grande em todos os sentidos, parte de um pressuposto: sou um homem de certezas. Lamentavelmente, Rogério, não o sou. Aliás, aproveitando o sub-título da Pastoral Portuguesa, "I am [too!] learning how not to feel strongly about anything". Mais, tenho para mim que esse tem sido o grande ensinamento que venho recebendo desde que abandonei a adolescência (ainda que, um dia, há alguns anos atrás, alguém me tenha acusado de ser um adolescente tardio...). Cada vez tenho mais dúvidas e menos certezas.
Mas o pressuposto justifica-se. Comecei o texto com um arreliador: "Não tenho dúvidas". Na verdade, e julgando que tinha deixado isso claro no texto, a única certeza que tinha era que "Tintim no Congo" é o pior álbum de Hergé (e até sei que tu, Rogério, alinhas nisto comigo). No resto, o texto é uma antítese da primeira frase. Dúvidas a rodos.
O Rogério disserta depois sobre a inflação que nota nas minhas palavras "racista, desumano e cruel". Por momentos julguei que havia cometido um erro entre muitos. Pensei logo em me refugiar no tardio das horas a que escrevo ou então, pura e simplesmente, teria que aceitar que havia caído no erro que tantas vezes aponto e que até agora julgava abominar: também eu pertenço à malta que vê discriminação em tudo o que mexe. O Rogério socorre-se do dicionário. Racismo é uma "«doutrina que tende a preservar a unidade da raça e assenta na suposta superioridade de uma raça que se confere o direito de exercer domínio sobre as outras», e também como «hostilidade face a um grupo étnico diferente»". Ora, julgo não estar muito para além das capacidades hermenêuticas de ninguém percepcionar que o álbum "assenta na suposta superioridade de uma raça que se confere o direito de exercer domínio sobre as outras".
Exemplo? O episódio do comboio na página 20 da Verbo. Para quem não possui a obra, fica a descrição: Um comboio descarrila porque o carro de Tintim fica preso nos carris. Tintim ordena aos passageiros que o voltem a pôr nos carris. Estes, de lábios grotescamente inchados, revelam pouca vontade para o trabalho. "Eu estou muito fatigado", responde um deles. "Mas... Mas... Vou sujar a mim", replica um outro de colarinho, gravata, punhos, mas sem camisa. A cena termina com um africano a comentar com outro: "O siô branco ser muito esperto". Mas atente-se à vinheta em que Tintim, com expressão facial irada, pergunta: "Então? Todos ao trabalho! Não têm vergonha de deixar este cão trabalhar sozinho?" No meu entender, esta vinheta contém a maior dose de racismo (isto já vai em doses... Não tenho mesmo juízo). Milou (o tal que acabará por ascender a rei dos pigmeus!) empurra a locomotiva sozinho e pensa/ladra: "Vamos, bando de mandriões, toca a empurrar!" Enquanto isso, Tintim mantém-se em postura supervisora, deixando a Milou e aos africanos o trabalho e limitando-se a vociferar umas ordens. O Rogério chama-lhe "sobranceria colonial". Para mim, "assenta na suposta superioridade de uma raça que se confere o direito de exercer domínio sobre as outras".
Depois, o Rogério penetra num debate muito interessante que resumidamente pode ser apresentado sob esta forma: "Se o «Tintim no Congo» deve sair da estante dos mais novos, então não deveriam muitas outras sair também?" Ora, Rogério, essa é precisamente a demanda do meu post. A dificuldade em definir a fronteira. E essa definição não é tão clara e fácil de traçar como os "patrulheiros dos patrulheiros" quiseram passar.
Deste o belíssimo exemplo de Astérix. Julgo que ninguém duvida, apesar de tudo (e da tua leitura das camadas de significado), na diferença entre a violência de Tintim no Congo e de uma qualquer obra de Astérix (e mesmo de Wild E. Coyote!). Em nenhum momento, e sem querer entrar em questões ligadas à morte (que nunca acontece aos romanos), ou às experiências funestas com animais (apesar dos javalis de Obélix), repito (pareço o Malheiro, Deus me livre!), em nenhum momento, Astérix tem "sobranceria colonial", e mesmo a relação com os romanos, com os javalis ou a padronização frequente de espanhóis, ingleses, portugueses, e por aí fora, é seguramente menos violenta (ou melhor, nem sequer há violência) que todas as cenas cruas de "Tintim no Congo", que enunciei no post que despoletou este nosso debate. Aliás, se assim não fosse, porque é que os editores escandinavos (dos países dos cartoons que escandalizaram o Islão!) pediram a substituição daquelas 4 tiras pelas que coloco na imagem acima? (a propósito, já as conhecias?)
Assim como, e perdoa-me nova e clara inflação, mas aproveitando a deixa das comparações, o "Tintim no Congo" é ideologicamente menos radical que "Mein Kampf" ou menos violento que "American Psycho". Podemos incluir estes dois na estante infanto-juvenil?
Sobre o meu aplauso à solução final encontrada, pareceu-me um mal menor. Seguramente que tanto barulho criado pela CRE foi um tiro no pé e, tal como escrevi, pareceu-me radical e desmesurado, contribuindo inclusivamente para uma maior propaganda da obra. Agora, a partir do momento em que o barulho estava feito e a promoção indirecta também, as livrarias tomaram uma posição defensiva, mas, ainda assim, bem melhor que a fogueira de livros (tão querida do autor de "Mein Kampf"), a proibição da reedição do livro ou como a página que acima reproduzi mostra, reescrever a história e a estória, como acabou de certa forma por se repetir com o cigarro de Lucky Luke.
Aproveito, por isso, (até porque, apesar de não teres gostado mesmo nada do meu post, eu gostei muito do teu e parece-me que estamos mais próximos que afastados no tema) para respigar o fim perfeito da tua prosa: "Falsificações do passado, por menor que seja a escala, e por mais benignas que sejam as intenções, nunca melhoraram o futuro de ninguém. Sobre isto, pelo menos, tenho muito poucas dúvidas". Eu também.
Adenda à adenda:
1 - No "A Memória Inventada", Vasco Barreto colocou a página do episódio do comboio que referi acima. A preto e branco e em francês.
2 - Assim de repente, como seria de esperar, a lista dos "patrulheiros dos patrulheiros" aumenta. Mais textos para o consenso: no Nonas, no Escrita Casual, no Nêspera, no Holocausto, no Briteiros, no A interpretação do tempo, no O Povo e no Tascuscopos.
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