O arco íngreme da ponte
Já aqui tinha falado da forma como as memórias do meu avô me transportam deliciosa e nostalgicamente para um Porto de outros tempos. Durante um prolongado jantar há um bom par de anos, encaminharam-me para próximo da ponte Maria Pia, na longínqua década de 30, através dos seus olhos profundos, onde a mágoa e a saudade são sempre ultrapassadas por uma gargalhada aberta de episódios absolutamente trágico-hilariantes.
Falou-me das traquinices de duas mãos cheias de amigos que, com sede de façanhas e aventuras, trepavam pelo arco da Ponte de Ferro, enquanto o Zé da Ponte, guarda da linha, com casa do lado de Gaia, os apedrejava com a brita que sustentava os carris, procurando de forma hostil, sempre sem sucesso, desmotivar tal engenho.
No meio daquela horda de travessos, capazes das maiores tropelias, muito além da louca e suicida subida da ponte Maria Pia pelo arco, destacava-se o Ernesto "Manquinho", cingido pela inata ausência de uma mão e dos dois pés. Ernesto era um rapaz doente, que acabou tuberculoso, situação tão comum na densa São Victor de outros tempos, oriundo de uma família massacrada pelos contornos sinuosos da vida, com um irmão também ele problemático e mudo.
Ernesto, ainda que claramente limitado pela sua profunda deficiência física, não só se atirava para o Douro do tabuleiro inferior da ponte Luís I, como executava na perfeição a subida da ponte ferroviária, não com a técnica do meu avô e dos compinchas, mas através de uma arte própria, graças aos mínimos cravos de ferro da ponte, pelos quais, com uma destreza inigualável, trepava pela obra de Eiffel, condicionado ainda pelo concurso de pontaria do Zé da Ponte. Ernesto, o meu avô e os restantes parceiros de brincadeira, visavam atingir de forma célere o "Monte do Seminário", de regresso a casa após os refrescantes mergulhos no Douro em Verões bem mais quentes que este que acabamos de viver.
Desses dez temerários, só sobra o meu octogenário avô. O Ernesto "Manquinho" morreu de tuberculose, numa ilha pequena da Rua de São Victor, agravada por uma valente sova de uns vizinhos de apelido Nobre, por motivos que já ninguém lembra. Os outros, lentamente, um por um, têm partido para lá da Ponte e do Rio, para lá do Porto e da Vida.
Hoje, irónica e perpetuamente, descansam no Prado do Repouso, ali mesmo junto à Ponte de todas as aventuras e proezas.
Não foi contudo nenhuma das subidas alienadas pelo arco de ferro da ponte Maria Pia que conduziram às suas despedidas. A louca fantasia das crianças, ao jeito criativo de Enid Blyton, é sempre mais saudável que a tirana monotonia da rotina dos adultos.
P.S. - Tal como prometido aqui.
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Imperdível:
- O texto de Pacheco Pereira sobre a mesma face oriental do Porto, ainda que uns anos depois, no Abrupto.
- A resposta de Bruno Sena Martins a Luís Carmelo, numa troca de ideias em que eu também participei nas caixas de comentários.
- A referência à revista K e ao mundo adolescente da transição de décadas 80-90, pelo qual também passei na escola secundária (lembras-te P. Rei?), pelo André Moura e Cunha.
- Este texto (e tantos outros...) do Tiago Barbosa Ribeiro, no Kontratempos.
- Esta recordação hilariante (mais uma!), do Fitzx no Cromos da Bola.
- A celebração dos 4 anos do Pobo do Norte. Parabéns. Um must!
Etiquetas: Porto
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