quarta-feira, novembro 29, 2006

Summerhouse


Summerhouse - The Divine Comedy

Como podem verificar, o post hipnótico do Pedro, no excelente Fonte das Virtudes, serviu de inspiração absoluta para esta humilde cópia. O loop, a voz de Neil Hannon, a melancolia das imagens transportadas pela doce sonoridade do vocalista dos Divine Comedy, naquela que é para mim a melhor canção da banda - Summerhouse. Está lá tudo. O extrordinário poema desta canção é que está aí em baixo.
As fotografias que aqui se apresentam já andaram por aí. Foram publicadas anteriormente no extinto Avenida dos Aliados, onde coleccionei, post após post, algumas imagens da Invicta.
Neste caso, o Porto nocturno. A casa de Verão que habita eternamente no meu espírito outonal.

Summerhouse - The Divine Comedy

Do you remember, the way it used to be?
June to September,
In a cottage by the sea.
Distant cousins, local kids
We climbed every tree together,
And it never, ever rained
'Til we climbed back on the train
That would take us so far away
From the village and the rain,
And the summerhouse
Where we found new games to play.
Do you remember Sunday lunch on the lawn?
Daring escapes at midnight,
And costumeless bathes at dawn.
You were only nine years old,
And I was barely ten
It's kind of weird to be back here again...
Do you remember
The summerhouse?

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Flutuações


Belly - Full Moon, Empty Heart

Excelente post do Pedro Mexia sobre o binómio loucura/música, no cada vez melhor Estado Civil.
Lá, é referido o pioneirismo da banda de meias-irmãs, Kristin Hersh e Tanya Donelly - os Throwing Muses - no que se refere à mudança de velocidades que frequentemente imprimiam à sua música (e que terá prováveis influências bipolares), mesmo quando comparada com a precocidade dos Pixies de Frank Black.
O Maradona, aludindo ao mesmo post do Pedro Mexia, escolheu a canção Not Too Soon da referida banda para ilustrar essa veia de aceleração e travagem, que tanto impacto teve na boa música que se seguiu. Excelente escolha, no meu entender. Aliás, foi nela que pensei imediatamente.
Por isso, para não ser repetitivo, lembrei-me logo de outra composição que me é particularmente cara, uma vez que, em tempos que já lá vão, eu a ouvia persistentemente no velho leitor de CDs, do meu antigo Laguna.
Os Belly foram uma banda posterior da mana mais protegida pela Mãe Natureza - Tanya Donelly (uma espécie de Scarlett Johansson precoce da música alternativa) - que apesar de apenas ter lançado dois LPs (Star e King), deixou um conjunto de canções extraordinárias como Feed the tree ou Now they'll Sleep, entre tantas outras.
A Full Moon, Empty Heart tem, ainda que num tom mais ligeiro e mainstream que o praticado pela antiga banda de Tanya Donelly, todos os velhos tiques da fúria intempestiva (ou do entusiasmo sem freio) alternados com a calma, a serenidade e até o sussurro que fizeram das Throwing Muses uma banda precursora.

terça-feira, novembro 28, 2006

Adenda...

...ao que Carlos Romão escreve na Cidade Surpreendente, acerca da relação fria entre Camões, que poucas referências tem na cidade (à excepção do nome de uma rua e de dois bustos singelos), e o Porto, cidade que não terá feito parte dos seus percursos, como alguns defendem.
Sobre este tema, Artur de Magalhães Basto, em Estudos Portuenses de 1962, referindo-se à eventualidade do pai de Luís de Camões, Simão Vaz de Camões, ter vivido na cidade do Porto, como afiançavam alguns estudiosos antes dele, rematou após um texto muito interessante:

"Em conclusão: o fidalgo, irmão de D. Bento de Camões, de nome Simão Vaz de Camões, que por 1570 vivia no Porto, casado com D. Francisca Brava, e que, em 1571, foi nomeado capitão de ordenanças da mesma cidade, é o mesmo endiabrado personagem que Juromenha (e outros autores na sua peugada) tomaram como pai de Luís de Camões, de quem era certamente parente mas em grau que se desconhece."
Afinal, tendo em conta a presença de parentes na Invicta, pode ser que o grande poeta tenha vindo ao Porto passar um fim-de-semana, visitando a família!

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sexta-feira, novembro 24, 2006

O rochedo

O penedo de Gibraltar como nós o vimos, numa noite quente do Verão de 2005.

"Os três níveis cósmicos - Terra, Céu, regiões inferiores - tornaram-se comunicantes. (...) A comunicação é por vezes expressa por meio da imagem de uma coluna universal Axis mundi que liga e ao mesmo tempo sustenta o Céu e a Terra, e cuja base se encontra cravada no mundo de baixo (o que se chama «Infernos»). (...) A montanha sagrada é um Axis mundi que liga a Terra ao Céu e ela toca de algum modo o Céu e marca, por consequência, o ponto mais alto do mundo."
Eliade, Mircea (1956) O Sagrado e o Profano.

Proa de navio que irrompe pelo mar, o maciço calcário ergue-se majestoso à minha frente. Ao som das ralas e dos grilos que sussurram a melodia da noite, deito-me no chão e capto, no calor daquele Verão, o misterioso Monte de Tarik (líder árabe da invasão muçulmana da Península, no século VIII) e a encantadora e poderosa Lua, luz de alerta de um deus ensonado. No romantismo de um luar impetuoso, o Mediterrâneo e o Atlântico trocam olhares apaixonados e cruzam as suas águas naquele lugar, entre um beijo salgado nas rochas.
Criado pelo inexorável vigor da tectónica das placas ou pela força interminável do semideus Hércules nos seus doze trabalhos, Calpe (o outro nome do rochedo) vigia sereno o estreito de Gibraltar onde, em tempos, o ocidente terminava e a porta do purgatório se abria, tanto para Ulisses como para o mundo. No sopé, junto ao caminho de passagem de navios e gentes, a luz ciclópica de um farol ecoa nas trevas como uma nota musical aguda no silêncio grave de uma despedida.
Imponente e tranquilo, o rochedo assemelha-se à escada de Jacob, trilho percorrido pelos anjos, entre o mundo dos mortais e a morada de Deus. Lá em cima, junto ao último degrau, aquele que o criou ainda se rejubila pela perfeição da sua obra e decide que um dia, quando regressar, será por ali que descerá. Ali, no umbigo do mundo.

A ler, por aí:
Lutas que valem a pena, no
Bichanos do Porto e no Agir pelos animais.
Verdadeiras pérolas, como o site enciclopédico de
José Adelino Maltez; a extraordinária viagem ao passado do Gabriel Silva (do Blasfémias) no Diário da minha viagem para Filadélfia; ou a exposição de fotografias de outros tempos no Antigamente..., do Marco Oliveira (via Dolo Eventual)
Tiros na mouche em dois dos meus pequenos ódios de estimação: Manuel Alegre no
Arrastão, do Daniel Oliveira, e Figo no Avatares de um Desejo, do Bruno Sena Martins.
E, finalmente, uma sugestão: uma palestra no próximo sábado pelos autores do
Dias Com Árvores.

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segunda-feira, novembro 20, 2006

Duração do mundo

O antigo Palácio de Cristal na primeira metade do século XX.

Por norma, edifícios, fontes, estátuas ou qualquer outro tipo de estruturas físicas da cidade do passado que tenham sido demolidas ao longo dos tempos (quer por necessidades contextuais da urbe, quer por pura insensibilidade para com as mesmas), são tendencialmente idealizadas no futuro.
Usualmente, o lamento estende-se a toda uma franja de curiosos pelo passado da cidade, que olvidam os aspectos negativos das referidas construções e salientam a sua importância simbólica, estética ou, menos habitualmente, funcional para o cidadão, em particular para o da cidade actual.
No Porto, o lote nostálgico inclui, entre outros exemplos, o Arco da Vandoma, a antiga Câmara Municipal, a Ponte Pênsil, o Convento de São Bento de Avé-Maria, e, acima de qualquer outro, o Palácio de Cristal, para sempre idolatrado por quem nele nunca passeou ou por quem dele se recorda vagamente de quando era pequeno.
As razões para essas demolições são sempre vistas como pequenas, incompreensíveis ou de pura barbárie, pelo que, tal como aconteceu com a romana Coluna de Trajano ("que ela permaneça intacta por tanto tempo quanto a duração do mundo", dizia um édito do senado romano, em 1162), muitos desejariam que sobre elas se houvesse decretado em defesa da sua existência eterna.
Na preservação da memória idílica dessas estruturas, para além da revolta pelo seu desaparecimento prematuro, são geralmente esquecidas as opiniões negativas que sobre elas existiram, mesmo se feitas por individualidades com crédito, num processo precisamente inverso ao que se verifica quando as construções são preservadas. O melhor exemplo disto será, durante muito tempo, o da Torre Eiffel e a lembrança das críticas que foram feitas por inúmeros intelectuais parisienses de final de XIX, como Maupassant ou Zola ("A Torre Eiffel (...) é a desonra de Paris, não tenham dúvidas. (...) não se pode imaginar nada de mais feio para o olhar de um velho civilizado!").
Para que conste, e ainda que não fosse tripeiro de facto, mas do Porto por paixão, Camilo Castelo Branco, mesmo preso na Relação, escrevia jucosamente sobre o “circo-bazar-teatro-restaurante-ginástico-pirotécnico, chamado em linguagem enxacoca Palácio de Cristal” aquando da sua construção, no jornal Lisboeta “Revolução de Setembro”:
Um Palácio de Cristal no Porto já não é mera utopia de cristalinas imaginações. O dinheiro é a alavanca de Arquimedes […]. Dai-me dinheiro e eu cristalizarei a Cidade Eterna. É que o Porto está riquíssimo. Os capitais não sabem já onde hão-de frutificar cinco por cento. E os capitalistas começam a descrer de Cristo e da sua palavra, porque este dissera: «dar-vos-ei cento por um» e as coisas correm de modo que daqui a pouco será muito feliz quem tirar um por cento. O que eu não sei é se Jesus fez esta promessa a uns cavalheiros que ele encontrou uma vez dentro do templo."
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A ler:
A fina ironia da vida repetida, no
Avatares de um desejo.
O habitual genial humor negro (adjectivo paradoxal...), no
Estado Civil.
Texto e imagens revigorantes, no
Não Sei Pra Mais.
E as saudades, em sintonia com o post acima, de algo que já partiu e não volta. Por estranho que possa parecer,
João, é da chuva que eu sinto falta...

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sexta-feira, novembro 17, 2006

Viena

Viena vista por nós a partir da Riesenrad, no penúltimo dia de Julho de 2006.

"As esculturas abandonam cada vez mais as praças e as ruas para se fecharem nas prisões de arte chamadas museus."
Camillo Sitte (1889) Der Städtebau nach seinen künstlerischen Grundsätzen.

Viena, lá longe, adormecia tranquila à medida que noite acordava, num final de tarde soalheiro do Verão passado.
Apesar de encantadora, Viena já não é a mesma de Sitte, que nela nasceu em 1843, rodeada de muralhas abaluartadas, nem a Vindobona dos romanos, campo fronteiriço de vigia ao outro lado do Danúbio, onde os bárbaros habitavam.
A cidade que se espraia adormecida à minha frente, é agora a Viena do glamour do Graben, antigo fosso romano transformado em avenida pedonal rodeada de edifícios de Wagner e pastelarias deliciosas e artisticamente irrepreensíveis. É a Viena de trechos medievais, com pequenos becos e ruelas junto à Ruprecht kirche, a mais antiga igreja da cidade. É a Viena monumental do gigantesco Ring onde a Ópera, a Karlskirche ou o albino Parlamento encantam pela dimensão extraordinária. É a Viena da Arte Nova, da filigrana do edifício da Secessão, das flores da Casa Majolica, do “Beijo” de Klimt.
Viena soube-se adaptar a tudo o que era novo no horizonte de mudanças constantes. Foi capaz de transformar as suas formas e os seus elementos, as suas qualidades e os seus defeitos, em novas cidades perante diferentes desafios, da velha colónia romana para o dinâmico burgo medieval, da cidade enclausurada atrás de muros à cidade aberta de final de XIX. A cada passo, Viena conseguiu conviver o medievalismo da Stefansdom com a arte nova de Olbricht ou o mecanicismo da roda gigante Riesenrad, alojada no velho parque de caça, parque de diversões do Prater desde o final de Oitocentos.
Sitte queixava-se por isso de boca cheia, assustado com o monumentalismo exacerbado e sem escala da RingStrasse, onde vastos espaços vazios alternavam com edifícios de dimensão extraordinária, e nostálgico com a aparente perda espiritual da Viena medieval, dos pequenos espaços fechados, íntimos e da arquitectura dos detalhes. Tal obsessão, levada a foros de loucura no final da vida, ofereceu-lhe o epíteto de estúpido por parte do modernista Corbusier. Esse apelo pelo passado, justificado ou exagerado, foi redescoberto muito mais tarde pela Europa, já na década de 60, quando as soluções progressistas se revelaram falíveis ou, nalguns casos, catastróficas.
Hoje, Viena é uma cidade completa, onde as diferentes épocas se tocam, cruzam e respeitam, como na Hoher Markt, antigo fórum romano, tribunal e feira medieval, decorada por fonte barroca e balizada por edifícios do princípio do século XX. Função e forma convivem em harmonia, acrescentando valor com a mistura.
Sitte queixava-se da perda de identidade da sua cidade. Da forma como as praças tinham perdido os seus mercados, de como as fontes perdiam a sua função de abastecimento e eram apenas peças decorativas, de como as estátuas eram enclausuradas nos museus, perdendo o seu papel exterior de ornamentação e de símbolo.
O que diria Sitte se visitasse o Porto dos dias de hoje?
O Porto que escondeu o seu comércio e os seus mercados em caixas concentradas na periferia, quando a memória das feiras da cidade central se esvaiu há muito nas areias do tempo. Numa altura em que se multiplicam as feiras medievais em tudo o que é lugar (até em cidades que nunca as tiveram!), não deveria o Porto activar as que persistem ou reerguer as que desapareceram, trazendo animação e alegria para o centro?
O Porto arrumou as suas inúmeras fontes num jardim que ninguém visita porque o horário é obsceno (das 9 às 5 da tarde e só durante a semana) e porque não há a mínima divulgação da qualidade inequívoca do espaço. Não deveria o jardim dos SMAS ser valorizado e dinamizado, abrindo as suas portas ao público em horário alargado e ao fim-de-semana?
A arte urbana no Porto é um tremendo incómodo como se pode ver pela estátua do Porto que permanece de castigo, com as costas voltadas para a cidade; ou com a estátua de D. Pedro IV que quiseram virar ao contrário; ou com os cruzeiros da cidade, enclausurados nos cemitérios, degradando-se dia a dia.
Há medida que as voltas da roda de Viena contam infindáveis dias, as palavras de Camillo Sitte soam cada vez mais verdadeiras: “É só estudando as obras dos nossos antecessores que poderemos reformar a organização banal das nossas cidades."
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Sugestões:
Apoiar
esta causa no Daedalus.
Ler todos os dias o
Estado Civil.
Celebrar
este aniversário azul e branco.
Resolver este mistério, no
Pobo do Norte.

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terça-feira, novembro 14, 2006

Do outro lado

As pontes, as cidades e o Douro, no anoitecer da passada sexta-feira.

Aos pés desdobrava-se num abismo a montanha pedregosa e alcantilada, banhada lá em baixo mansamente pela água do rio. A um lado acastelava-se a casaria da cidade em anfiteatro; a torre dos Clérigos, e as agulhas das torres mais altas recortavam-se no fundo luminoso do poente; a Ponte Pênsil figurava-se naquela altura um fio de arame ligando as duas margens, e sobre o cimo da montanha oposta e declivosa contornava-se duramente o Convento do Pilar no fundo do céu, maciamente esbatido em tons rosados.
Júlio Lourenço Pinto (1879) Vida Atribulada

Espreito sobre o muro antigo em pedra, como o fazia em miúdo ao colo do meu pai.
Naquele lugar, mesmo antes de entrarmos no Citroën e logo depois da visita de domingo à minha cúmplice avó, queria sempre observar o Douro e o Porto a partir desta varanda, onde um muro demasiado alto me impedia de o fazer sem a ajuda paterna.
Talvez por isso, talvez por este ritual de finais de tarde dominicais, aprendi desde pequeno a ver a minha cidade desta perspectiva, onde a face oculta da ponte Luís I se revela, revestida num quadro negro, quase dantesco, da amálgama desordenada do aglomerado.
Vista deste lado, a cidade é mais sombra que luz, mais mistério que história, mais matéria que espírito. O centro histórico aparece lá longe, por trás da muralha do século XIV, parecendo muito mais distante do que de facto está, mas desvendando a diferença temporal da construção destes dois lugares.
Trazido pelo frio que escorre pelas margens do Douro, pela velocidade avassaladora do comboio que passa mesmo ali na escarpa ou, finalmente, pela memória da vida dura e crua daqueles que montaram o espaço urbano do Porto a Oriente, na árdua labuta entre a máquina de tecer o fio e a taverna de tecer o fígado, vejo-me percorrido por um arrepio gélido e invadido por uma sensação de anacronismo, como se mais importante que a deliciosa paisagem que daqui desvendo agora, fosse ter estado ali, há 200 anos atrás, quando esta rua se abriu, quando os ribeiros corriam vertente abaixo, quando três velhas quintas suburbanas se ali encontravam: a do Prado, pertença do Bispo; a do Reimão, da nobre família Cirne; e a da Fraga, que havia pertencido aos Jesuítas.
Acompanho com o olhar o sentido decrescente do Sol, mas impeço os meus olhos castanhos de moverem os antigos moinhos que por aqui existiram com gotas de água salgada, para, mesmo antes de entrar no automóvel que agora eu conduzo, espreitar uma última vez sobre o muro (que entretanto ruiu) as luzes da cidade que se vão acendendo ordenadamente, e sorrir perante a sinuosa curva final da rua de Gomes Freire, herança orgânica de um velho caminho rural e metáfora viva do Porto migrante de XIX.

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sexta-feira, novembro 10, 2006

Por mais um pequeno passo.

Massarelos e o Douro, vistos ao princípio da noite de hoje.

Ao Porto, devo tudo.

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terça-feira, novembro 07, 2006

Lá, no alto.

O palácio das Sereias, Porto, 18 de Setembro de 2004.
"Ouviu-se a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se à amurada da nau, com os olhos fitos no mirante."
Camilo Castelo Branco (1862) Amor de Perdição
Alcandorado sobre o Douro, o Palácio das Sereias parece navegar entre o céu e a linha do horizonte.
Lá de cima, de onde se avista o mar e a terra, dois olhos redondos cuidam os incautos e servem de orientação para quem os procura, mesmo que a Bandeirinha tenha há muito desaparecido.
Fantasia e realidade convergem nas escadas graníticas entre o palácio e a Alfândega, que, em tempos, fora dos judeus, agora, é de todos os credos.
As palmeiras e os pinheiros mansos, vegetação meridional, prenunciam o odor a oliveiras e alentam quem navega inseguro rumo ao Atlântico, de vistas presas naquele olhar.
Zelai pelas vossas vidas!” – parece dizer, lá no alto – “Que eu sou apenas fruto da imaginação barroca, concebida como prima abastada da linha idealizada entre torres, dos Clérigos à Marca!
Parte o bote com a minha alma apenas (vazio, portanto), rumo a paisagens azuis e águas tranquilas, num qualquer final de Setembro.
A cada vaga que empurra o batel, a cada olhar sobre o ombro caído, a cidade converge num só ponto, primeiro; num só fôlego, depois.

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domingo, novembro 05, 2006

Memórias

No meio de um livro antigo de culinária, estava esta preciosidade. São uns biscoitinhos de canela que aprendi a fazer na escola, na 4ª classe, e que depois fiz em casa várias vezes, aos sábados à tarde. Esta folha manuscrita e com um ou outro erro ortográfico, tem muitas manchas, borrões e até carimbos, o que me leva a pensar que terá nascido numa das muitas alturas em que a minha mãe, professora primária, fazia as cópias dos testes com gelatina. Não percebia bem aquele processo na altura, mas lembro-me que envolvia passar os testes com folha de acetato para inverter a imagem, e depois com esse acetato imprimia-se a imagem num tabuleiro com gelatina, onde depois se carimbavam as folhas vazias para copiar o teste. Eu e a Papi assistíamos fascinadas a estes momentos, e no fim tínhamos como recompensa o direito de usar um dos cantinhos livres da gelatina para fazermos as nossas cópias. A Papi faria certamente algo artístico, eu limitava-me a fazer borrões, frustrada por não ter habilidade para mais. Dois deles sobreviveram no fundo desta folha, com as minhas iniciais e a data (obviamente acrescentadas a caneta porque na altura não conseguia inverter as letras). Era uma espécie de carimbo que formalizava os "meus documentos".
Os biscoitos continuam a ser óptimos, mesmo feitos com farinha integral. Mas não sabem bem aos mesmo se não forem guardados naquela caixinha chinesa...

sexta-feira, novembro 03, 2006

Envelhecer (enfim)

A avenida Rodrigues de Freitas, antiga Rua do Reimão, como a vi, ainda há pouco.
"Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio."
Camus, Albert (1942) O Estrangeiro

A luz acesa, que emana da janela do outro lado da rua, chama encantadoramente por mim.
Entre a escolha de responder ao impulso ou renunciar ao instinto, observo o tempo a passar devagar, através da lenta ligeireza do amarelecimento das folhas e da velocidade invejável dos bólides que cruzam incessantemente o caminho até ao outro lado da rua.
Continuamente, a tília a meu lado sussurra baixinho números sem fim, a cada carro que passa rápido, numa contagem tão interminável como veloz, tão angustiante como o choro de alguém que perdeu outrem, lá ao fundo no Prado do Repouso.
Neste caminho, velha estrada medieval urbanizada há 120 anos por um tal de João Carlos de Almeida Machado (engenheiro que a cidade tratou de esquecer!), sobram luzes e cores, azulejos e ferro, e sobretudo árvores, testemunhas vivas de anos de mudança, contados nos anéis do firme e espesso tronco e no sussurro que perpassa a quem passa atento, entre a folhagem prateada e os ramos antropomórficos das tílias.
Acabarei por terminar os meus dias como anel de uma árvore ou como folha amarela de uma tília, pela inata inabilidade de agarrar com força as luzes coloridas da vida, suavemente cerrando as pálpebras como quem sopra uma vela depois do seu filho adormecer.


Revista de blogs:
1 - Como habitualmente, recomenda-se a leitura do
Avatares de um desejo. Mais uma na mouche!
2 - Hilariante a série "Grandes Portugueses" no
Arioplano.
3 - Mais um excelente trabalho do Carlos Romão no
Cidade Surpreendente, com a digitalização das fotografias de Domingos Alvão por alturas da inauguração do Coliseu do Porto.
4 - Perspicaz a leitura de Paulo Araújo sobre a ausência do Outono fora das cidades, no sempre óptimo
Dias Com Árvores. Definitivamente, a ler!
5 - Post a um bigode da imortalidade, no
Cromos da Bola.
6 - E, que isto já vai longo, adormecer ao som dos Smiths. Canção lembrada (há quanto tempo não a ouvia...) pelo
Estado Civil.

Um enorme beijinho de parabéns do Porto para NY! Temos saudades tuas, Kate!

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quarta-feira, novembro 01, 2006

Envelhecer

A Avenida Rodrigues de Freitas, no Porto, hoje ao princípio da noite.

Onde quer que vá, vou devagar.
(acabarei este post noutra altura)

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