Toulouse - Paris ou Grandes Vinhetas # 21 (Dia Três)
Edgar Quinet, Raspail, Denfert Rochereau... O meu corpo oscila ligeiramente, de um lado para o outro, no túnel interminável do metro parisiense. Faltam quatro estações para sair. Dali, Porte d'Italie, são menos de 200 metros para o apartamento que um antigo colega de carteira, ausente em Portugal, me emprestou na Boulevard Auriol: sala, kitchenet, quarto com pequeno WC e vista para as traseiras do quarteirão, onde uma dezena de gatos se estendem durante o dia.
Ontem em Toulouse, entre a Place St Pierre e o hotel ainda decidi dar mais um passeio. Vício antigo de espremer as últimas forças de um dia de viagem, num "best of" do lugar onde estou. Assim o fiz. Da esplanada junto ao Garonne subi pela Rue Valade e desemboquei junto à Basílica St. Sernin. Dizem-me ser um dos exemplares mais interessantes da arquitectura românica no mundo. A torre octogonal prende a atenção de quem passa, mas todo o conjunto é arrebatador.
Esgueirei-me depois pela Rue du Taur, onde o tijolo vermelho, marca indelével da cidade, se impõe de forma verdadeiramente definitiva, sobretudo ao olhar de alguém mais habituado à patine do granito e à moda recente das cores múltiplas do centro histórico.
Ao fundo da rua, na entrada do antigo fórum romano de Tolosa, actual Place du Capitole, um velho sujo e vadio alimentava uma dezena de pombos perdidos, enquanto uns homens vestidos de verde fosforescente e acompanhados por um veículo de limpeza urbana as afugentavam com gestos de desprezo. Num ápice, temendo ser eu também tomado por um pedaço de gente acabada, tomei o caminho do hotel e ao longe ouvia o velho a resmungar: "Ils sont l'âme. Ils sont seuls!".
Também eu, sozinho num mundo encarnado e soturno, acelerei o passo ao som do piar furioso dos pássaros e do eco dos meus sapatos no lajeado. Porém, antes da primeira esquina, deixei o meu pescoço deslizar sobre os ombros e revivi o clássico cinematográfico de Hitchcock. Os homens batiam em retirada perante a fúria da passarada, que os bicavam enraivecidamente, enquanto o velho, só e abandonado, sorria enfim. (Há quem veja nesta péssima alegoria uma antevisão para o clássico do próximo Domingo à noite.)
Na manhã seguinte, apanhei o comboio para Paris. A segurança de ter lugar afiançado para dormir, numa cidade onde já havia estado antes, permitiu-me prolongar o sono matinal e tomar o transporte depois de um croissant e um cafe au lait. Olé.
Os campos de cultivo intensamente trabalhados, em tons de verde e amarelo, sucederam-se na paisagem que entrava pela janela do comboio, desta feita cheio e com uma comodidade a que um português suburbano não está habituado. Aproveitei para coscuvilhar tudo, do depósito de bagagens ao WC, da cabine-restaurante à traseira do última carruagem, onde a porta das traseiras fazia lembrar os velhos westerns.
Cheguei à gare de Montparnasse a meio da tarde e a fome aconselhou-me a comer. Maldita hora! A arquitectura sombria da estação combinada com uma sande de atum com maionese fora do prazo esgotaram o meu bom humor e esventraram o meu estômago.
Dali, parti um pouco enjoado e muito enervado com a comida francesa, tomando o metro que me levaria ao apartamento. Instalei-me e passei um bom bocado no WC. Inspirado pelo ambiente de toillet, lembrei-me do que Black Adder pensava dos franceses: "eating frogs, cruelty to geese and urinating in the street". Decidi então que a próxima refeição seria feita por mim no apartamento, não fosse o diabo (ou o Zidane…) tecê-las!
Mais aliviado, abandonei o edifício e fui até à Place de la Concorde. Se era para me vingar dos franciús, então aquela praça é o sítio certo. Só os franceses se dariam a este luxo... cortar a cabeça a um rei no local onde havia estado uma estátua de seu avô. Hoje em dia, o obelisco de Luxor, assim alinhado com a torre Eiffel e os candeeiros dourados, faz a praça se parecer mais com uma orgia fálica da antiguidade clássica grega do que com uma herança preciosa do urbanismo barroco. Depois espantam-se dos epítetos menos macios que os demais povos europeus atribuem aos franceses e ao tom encardido e “alegre” da sua linguagem.
Como vêem, a indigestão havia mesmo destruído a minha habitual boa disposição, apesar de já não sentir dores na barriga.
Pior... subi a Rue Royale à procura de umas macaronettes numa pastelaria famosa que cria fila ao fim de tarde em busca dos pequenos biscoitos coloridos. Seguidamente, entrei na neoclássica Madeleine e apreciei o trabalho de Haussman pela Boulevard fora, não sem antes visitar as mostardas da Maille e a diversidade da Fauchon, lojas gourmet incontornavelmente obrigatórias em Paris, até porque estavam as duas tão próximas de mim e da igreja albina de onde saía.
Chegado à Opera de Garnier, e uma vez que o Sol já não constava dos céus de Paris, apanhei o metro para St Germain-des-Prés, onde as esplanadas se enchem ao longo da Avenida e as galerias de arte inauguram as exposições. Pelo meio, entre parfum e glamour, algum canapé acabaria por me cair no colo.
Ainda que a passada tenha sido ligeira, cheguei ao Quartier Latin a horas difíceis de arranjar mesa, por entre os inúmeros restaurantes gregos da Rue de la Huchette, de pratos brancos partidos na entrada e música alta saída dos dedos dos tocadores de bouzoukis.
Esquecido da maionese de Montparnasse, alinhei numa Pita turca com molho de iogurte que definitivamente acabou comigo. Como dizia um antigo anúncio televisivo (ou um adágio popular, sei lá!): “O barato sai caro”.
Antes de apanhar este metro de onde vos escrevo, passei por um pequeno supermercado de indianos onde comprei massa, alho, azeite e marisco com o qual conto amanhã fazer o almoço. Já chega de colocar o destino do meu aparelho digestivo em terroristas gastronómicos.
Antes ainda de sair na estação Porte d'Italie, olho para o turbante do árabe a meu lado e vem-me à ideia uma vinheta memorável de Astérix sobre a Place de la Concorde do princípio da tarde.
Afinal, mesmo sem estômago, ainda vou para casa com um sorriso nos lábios. Ah! Vingança...
Etiquetas: Banda Desenhada, Diário de umas férias imaginadas, Outros Lugares
5 Carruagens:
Paris! Paris! Que optimas recordacoes :-) Descobri a Madeleine por indicacao tua! Obrigada pela dica :-) E' um dos meus monumentos favoritos. Linda linda!
Ai aquelas Pitas turcas e aquelas "salsichas" das quais nao me lembro do nome agora... Num desses restaurantes gregos de que falas, partiram um prato na cabeca do Tiago e eu fui arrastada para dancar no centro do restaurante por um dos donos... Tsz tsz tsz..Grande maluqueira!
O dia hoje vai correr bem :-)
Parece que estou a ler o guia "Michelin"...;D Aguardo expectante as novas paragens.
Sou fanático pela França!
As suas belíssimas descrições e o excelente recorte literário sempre dão para perdoar um ou outro reparo àquele que eu considero ser o país perfeito.
Parabéns por mais esta pérola... continue!
Abraço
Correia de Araújo
JRP, devido ao período de férias não pude acompanhar as últimas novidades do seu blogue. Agora que estou de regresso, e depois de um apanhado geral, posso constatar que o "Comboio Azul" está melhor do que nunca! Mais uma vez, os meus parabéns pelas magníficas fotografias do nosso Porto. E tão boa também a oportunidade de acompanhar este seu roteiro europeu! ;) Um Abraço.
O efeito azul da iluminação das tribunas de Saint-Sernin conjuga em perfeição com esta tua grande “peregrinação”.
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