Grandes Vinhetas # 15 (Para maiores de 18 anos)
"(…) Incapaz de dominar-se, baixou a cabeça, tomou-o entre os lábios húmidos, enrolou-o na boca, humedeceu-o com a saliva quente e pareceu nunca mais se cansar da brincadeira."
Guy de Maupassant (1880) As sobrinhas da viúva do Coronel.
Não tenho dúvidas. O álbum "Tintim no Congo" é seguramente o pior momento da obra de Hergé. E diga-se, não sou só eu que o acho... o próprio acabou por o definir como "um pecado da juventude".
O álbum é, de facto, péssimo. Racista, desumano e cruel, se o virmos pelo prisma da sensibilidade humana contemporânea, mas também tonto, desinteressante e errático, no que diz respeito à qualidade do enredo, e até sensaborão, insípido e desacertado no que ao desenho se refere. Mas então, porque é que escolho esta vinheta?
Como consequência da notícia sobre a decisão britânica da passagem do álbum das prateleiras dos mais novos para a secção de adultos, após protesto da Comissão Inglesa pela Igualdade Racial (que se refere ao livro desta maneira: "O único lugar aceitável para um produto destes é num museu, mas com um grande anúncio ao lado a dizer «Treta racista e retrógrada!»"), uma série de reacções de repúdio surgiram na net, da direita à esquerda, lembrando a popularidade do álbum no Congo e apelando à contextualização da obra.
Certo. A obra é de 1931 e reflecte a colonialismo em marcha, consequência do exacerbamento dos nacionalismos, que duravam desde finais de XIX, e que acabarão por redundar ainda na II Guerra Mundial.
Concordo. A obra terá uma enorme aceitação na África Francófona, demonstrando que estes não se intimidam com as claras referências racistas (bem mais que paternalistas, como já vi por aí escrito).
Mas, sinceramente, não entendo o incómodo que a todos criou. Não acham natural que uma Comissão pela Igualdade Racial se manifeste contra um livro racista? Para quem não leu a obra, a vinheta acima julgo ser suficiente. Tintim pergunta a uma turma de crianças negras quanto é 2+2 e não obtém resposta, mesmo depois de insistir (coisa que aliás continuará a fazer em vinhetas posteriores, sempre sem sucesso). Noutras vinhetas, Tintim deparar-se-á com a preguiça de um conjunto de negros, com erros sucessivos na oralidade e superstição extrema, com a subida de Milou ao trono dos pigmeus, com a mesquinhez na disputa por um chapéu e com a estupidez pela solução final, e por aí fora. Aliás, o rol seria muito maior não fossem as correcções de Hergé de 1946 para a versão colorida, em que, por exemplo, o traficante de animais para os zoos europeus deixa de ser negro para ser um branco.
No meu entender, todas estas razões seriam suficientes para a retirada do livro da estante dos mais novos. Para estas realidades, da violência, discriminação e racismo, já chegam as imagens e as palavras que os noticiários vomitam sem contenção, a qualquer hora do dia, para todos os públicos, incluindo o mais jovem.
Mas, lamentavelmente, a extensão da crueldade do álbum não termina no racismo.
Ao longo das cerca de 60 páginas de “Tintim no Congo”, Tintim age como um verdadeiro bárbaro grosseiro, matando indiscriminadamente animais atrás de animais. E, se nalguns casos mata ou fere em legítima defesa (como um tubarão, um crocodilo, uma cobra e um macaco para salvar Milou), noutros a morte é vista com um certo prazer ou envolvida numa piada de mau gosto, como quando pontapeia um macaco e um leopardo (ou o faz engolir uma esponja e lhe dá de beber para esta dilatar), quando mata um elefante para lhe retirar o marfim, quando mata quinze veados por julgar se tratar sempre do mesmo, quando mata um bisonte à pedrada por vingança, ou, finalmente, quando faz explodir um rinoceronte enchendo-lhe a carapaça de dinamite. Esta última cena é de tal forma brutal que, há alguns anos atrás, quando ainda Hergé era vivo (e ele faleceu em 1983), ela foi completamente alterada para a Escandinávia, a pedido da sua editora local, que considerava a cena demasiado bárbara para o público nórdico.
Hergé, numa famosa entrevista a Numa Sadoul, justifica-se desta forma: "eu estava cheio dos preconceitos do meio burguês em que vivia... Era 1930. Eu não conhecia desse país a não ser o que as pessoas contavam na época: «Os negros são crianças grandes... felizmente para eles, nós estamos lá! Etc.» E desenhei-os, os africanos, segundo estes critérios, com o mais puro espírito paternalista, que era o da altura na Bélgica".
No final de contas, tudo bem.
Hergé retratou-se e apontou o livro como "um pecado".
A Comissão fez o que devia. Lutou pelo que acredita, ainda que pareça radical e desmesurado, sobretudo a quem cresceu tendo como amigo-a-quem-tudo-se-perdoa Tintim.
A livraria Borders e a Waterstone's, que tomaram a iniciativa de mudar a obra de secção, também estiveram bem. Tendo o bom-senso de não proibir a obra, alteraram a classificação da mesma, permitindo aos adultos que a queiram consultar e comprar de o fazer. Mas, uma vez que o livro tem cenas claramente excessivas e, pior que isso, coloca como vilão (perante os valores ecológicos e de igualdade contemporâneos) aquele que deve ser o herói, símbolo de toda a valentia na defesa de causas nobres e humanas, as livrarias libertaram as crianças de encontros, desilusões e modelos errados que a obra poderia proporcionar.
É por isso que eu gostaria de saber se, aqueles que consideram esta posição um acto de "puritanismo politicamente correcto", a mando de "sinistros patrulheiros da correcção política", ou os que os confundem com "os maus que queimavam os livros", acham bem que as obras de Guy de Maupassant (reconhecido autor francês da segunda metade de XIX, amigo de Flaubert e Zola), onde se encontram excertos como o que coloquei em epígrafe (e, como devem saber, fui brando na escolha!), também deveriam fazer parte da secção infantil das livrarias.
Bah! Deixemo-nos nós de puritanismos liberais.
P.S. - Gostava de ter escrito esta linha da canção: "I had an uncle who once played for Red Star Belgrad."
Etiquetas: Banda Desenhada
5 Carruagens:
Grande texto! (No entanto, temos que ter em mente que é muito fácil julgar a história com a vantagem do tempo...)
Ricardo, eu até concordo plenamente com esta análise, mas há duas coisas que me incomodam no processo: em primeiro lugar, o racismo de "Tintim no Congo" não é novidade nenhuma, e o próprio Hergé, como notas, retractou-se, tal como também repudiou o "Tintim no país dos sovietes"; em segundo, há uma obsessão pela expiação dos pecados do passado que me incomoda, porque o passado existe para ser compreendido (até onde for possível), mas não para ser branqueado, alterado ou adaptado aos valores do presente.
Francisco,
De facto é extenso :-) E seguramente é fácil julgar a história. Direi mesmo mais... é provavelmente um dos grandes defeitos da humanidade: a facilidade com que julga o passado.
Ah! E parabéns! Sempre fui um fiel do JN e ainda que nas últimas semanas tenha sido um leitor errático, prometo prestar toda a atenção.
POS,
"o racismo de "Tintim no Congo" não é novidade nenhuma"
Pois não, Pedro. Os ataques à obra são antigos.
"há uma obsessão pela expiação dos pecados do passado"
Totalmente de acordo. E esta acusação é consequência dessa obsessão.
Mas ainda assim, medindo bem as coisas, parece-me que a decisão final não é desiquilibrada.
O passado, de forma alguma, deve ser apagado ou adulterado (ainda que a leitura do passado seja sempre incompleta, quando não incorrecta), e era impensável, nomeu ponto de vista, proibir novas publicações ou mandar queimar os livros.
Mas se pudermos evitar que os mais novos confundam o Tintim leal, justo e fraterno com o racista, preconceituoso e cruel dos dois primeiros álbuns, tanto melhor.
E nesse ponto de vista, julgo que as livrarias fizeram o seu papel.
Agora, essa espiação dos pecados do passado dá um outro post (talvez até um doutoramento!) que não era o meu objectivo para este. E nisso estou em absoluta concordância contigo.
Agora reparo, o JN domina os comentários do meu comboio...
;-)
Vejo que temos opiniões semelhantes a este respeito. Saudações titinófilas também.
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