segunda-feira, julho 09, 2007

Coração

As torres da Lapa, igreja onde reside o coração de D. Pedro IV - o rei liberal - 5 de Julho 2007.

Pulp - The day after the revolution

Nada tenho de visceral contra os automóveis. Mais, entre os livros que estou a ler neste momento encontra-se, na minha mesinha de cabeceira, a BD de Jean Graton "Michel Vaillant - Irish coffee", retratando precisamente uma corrida de automóveis antigos, em Connemara, na Irlanda.
Por isso, não aceito facilmente a crítica "Oh! Tu não gostas de carros!" sempre que manifesto algum desagrado pelo Circuito da Boavista, junto de amigos que me conhecem há muito.
Não discuto as possibilidades de futuro crescimento económico do evento com vantagens para a cidade e até de visibilidade do Porto por esse mundo fora, para além do agrado que poderá oferecer aos adeptos do desporto automóvel no Norte. São boas razões que espero (e estou a ser verdadeiro) se intensifiquem no futuro, caso a corrida de popós se mantenha.
Mas há coisas que me inquietam para além do que o blasfemo Gabriel Silva já apontou (trânsito caótico, moradores desesperados, totalmente cercados. Um ruído permanente de fundo ao jantar [...] péssimo para o «ozono», [...] com o dinheiro dos contribuintes. Da última vez foram 600 mil euros). Aliás já aqui o havia testemunhado ao lamentar a perda patrimonial da cidade, ligada à descaracterização da Avenida da Boavista, assim como todas as trafulhices associadas ao Metro do Porto e ao (suposto) viaduto que será necessário construir sobre o parque da cidade para possibilitar o eléctrico ou o metro, banidos que foram do viaduto desenhado por Solá Morales para que os carris não atrapalhassem as corridinhas.
Mas este fim-de-semana o incómodo é ainda maior. Isto porque se comemoram os 175 anos do desembarque liberal no Pampelido (8 de Julho) e a chegada ao Porto do exército libertador (9 de Julho), despoletando o Cerco do Porto em que a cidade Invicta resistiu, de Julho de 1832 a Agosto de 1833, contra as tropas Miguelistas comandadas pelo poder na capital.
E incomoda porque se procurarmos no site da câmara municipal do Porto (a grande entusiasta dos calhambeques) por alguma referência a esta data, não encontraremos uma única iniciativa à comemoração que chegou a ser equacionada como feriado municipal da Invicta, no princípio do século XX.
Tudo isto de facto me incomoda porque entre os vários momentos gloriosos do Porto, possivelmente esse é de todos o mais simbólico e glorioso. Lutando contra um país inteiro, aqueles homens de fibra (onde se encontravam Garrett, Herculano ou o rei D. Pedro IV), unidos pela causa do liberalismo político trazido pelo vento do Norte, encontraram na cidade o apoio e a resistência contra o absolutismo vindo das bombardas do outro lado do rio e dos inúmeros ataques nas raias do Cerco.
Dessa entrega, dedicação e brio da cidade, os três ilustres referidos jamais se esqueceram.
Garrett, filho do Porto, escreveu um dia que "se na nossa cidade há muito quem troque o b por v, há muito pouco quem troque a liberdade pela servidão".
Herculano, filho adoptado da cidade, avisou a quem não conhece o Porto: "não o julgueis antes de o tratar familiarmente. Não façais cabedal de certo modo áspero e rude que lhe haveis de notar; trazei-o à prova, e achar-lhe-eis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do velho Portugal, talvez seja ele quem guarda ainda maior porção da desbaratada herança do antigo carácter português no que tinha bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas demasias de orgulho."
Mas de todas as homenagens, talvez a mais bela e emocional da história, fê-la D. Pedro ao entregar o seu coração à cidade, onde ainda repousa mais de 170 anos após a sua morte, na imponente igreja da Lapa.
Por cá, na mesma cidade 175 anos depois, o município não tem uma única iniciativa para recordar esta data - 9 de Julho - que serviu como símbolo de todo um movimento liberal que só veio a terminar em Agosto de 1834, aquando da confirmação pelas Cortes da regência de D. Pedro IV e um ano após a libertação da cidade. Por sua vez, num concelho vizinho, a efeméride é celebrada com empenho, envergonhando a cidade do presidente piloto. Ano após ano, Rio tudo faz para apagar a identidade da cidade, travestindo-a na que ele quer, tantos são os esquecimentos e as omissões em torno de momentos que deveriam ser evocados condignamente, desde os aniversários de Garrett ao 31 de Janeiro de 1891, entre tantas outras.
Fosse este empenho, esta dedicação, esta nobreza de combate marca indelével de alguma cidade mais meridional e até feriado seria, celebrando a integridade e a lealdade de tal urbe. Por aqui, é data a esquecer entre fumo de tubo de escape e ronco de motor.
Mas não desanimem, para além de todos os esforços na corrida de popós, a edilidade já assegurou que estaremos na lista dos recordes com "a maior Árvore de Natal da Europa". A cultura está viva no Porto, deixando um leve odor a PVC e gasolina.
Ai Camilo! Se fosses vivo... muitas linhas corrosivas escreverias!
_______________

A ver:
1 -
Esta fotografia no Magistério6971.
2 -
Este cartoon no Bandeira ao vento.
3 -
Este post do CAA, no Blasfémias.
4 - A
série Benfica-China, no Blogo Existo.
5 -
Esta opinião de Pedro Correia, no Corta-fitas.

Etiquetas:

8 Carruagens:

Anonymous Anónimo said...

100% de acordo!
Vá lá que me poupou naquela estória das touradas.

Correia de Araújo

segunda-feira, julho 09, 2007 8:59:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O Porto é a cidade mais fotogénica do mundo.

Foi também uma grande descoberta, o teu blog. Voltarei para comentar o que escreves. Agora é tardíssimo. Só deu para ver as belas fotografias.

Um abraço (Século Prodigioso)

terça-feira, julho 10, 2007 2:31:00 da manhã  
Blogger PCS said...

Concordo em 99.9%...
O Camilo, corrosivo como ele era, de certeza que dava umas voltinhas para SENTIR o "leve odor a PVC e gasolina."

terça-feira, julho 10, 2007 9:59:00 da manhã  
Blogger JRP said...

Caro Correia de Araújo,

A questão tauromáquica pareceu-me logo ironia, ou então eu não começaria o texto com "Espero que tenha sido brincadeira".
De resto, até costumo concordar com quase tudo que escreve.
Cumprimentos.

Jg,
Obrigado.

Pcs,

É estranho que concordes, uma vez que isto foi o que eu sempre disse.
Começo a pensar que não me ouves quando falamos presencialmente.
E já agora, em que é que não concordas mesmo sendo só 0,1%?

terça-feira, julho 10, 2007 8:24:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

JRP a presidente da Camara Municipal do Porto!
Gosto de ver e admiro imenso esse teu orgulho tripeiro. Es mesmo filho da cidade, carago!

terça-feira, julho 10, 2007 10:58:00 da tarde  
Blogger JRP said...

Kate,

Não tenho méritos para isso. Mas conheço quem tenha, mas não o convenço a candidatar-se.
Mas, como é fácil de ver, adoro a minha cidade. (Tu bem o sabes...)

quarta-feira, julho 11, 2007 2:40:00 da manhã  
Blogger PCS said...

Porque falamos sobre isto presencialmente, penso que não havia necessidade de alongar mais este assunto. Ouço tudo com muita atenção, sabes bem disso. Concordo e subscrevo todas as tuas preocupações urbanísticas e patrimoniais da cidade, bem como a falta de sensibilidade de um certo senhor para com a nossa cidade.
Como alguém disse sobre o Hitler, o pior que se pode fazer e não fazer nada.
O 0,1% é pela “ironia” com que sempre focaste o desporto automóvel.
Abraço,

quinta-feira, julho 12, 2007 12:13:00 da manhã  
Blogger JRP said...

Só alonguei precisamente porque me pareceu que a mensagem não estava clara.
A ironia? Olha quem fala :-)
Abraço,

quinta-feira, julho 12, 2007 12:38:00 da manhã  

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