Ainda Paris (Dia Cinco)
Uma das evidências que levo desta vida é a frequência com que o divino entra em contacto com o terreno.
Conheço muitos episódios, que me foram contados na primeira pessoa, sobre contactos com parentes já desaparecidos, segredos revelados por vidência, actos milagrosos atribuídos a um qualquer Deus.
Lamentavelmente, a mim, o metafísico jamais se revelou. O mais perto que esteve de o fazer foi há uns anos atrás quando, por razões que a lógica Descartiana desconhece, o meu carro em funcionamento fechou automaticamente as cinco portas, deixando-me no exterior com as calças na mão. E aqui não uso a expressão "calças na mão" metaforicamente, mas no sentido mais lato da mesma. De calças na mão porque me tinha esquecido do cinto em casa e usava um número muito superior ao que me servia na altura, consequência de um súbito emagrecimento e de uma preguiça total em comprar roupa nova. Um aborrecimento tamanho que me fez amaldiçoar esse dia até à eternidade.
De resto, e apesar de diversas tentativas de contacto extra-sensorial, são anos de vida terrena sem experiências paranormais. Por uma vez que fosse, gostaria que o além me desse um sinal da sua existência, como uma visão do futuro, um milagre maravilhoso ou, pela primeira vez, uma boa crónica da Leonor Pinhão.
Recordo-me, por exemplo, de como chegava mais cedo ao colégio religioso da minha infância para ir rezar para a capela (para gáudio das irmãs de hábito cinzento! Mal elas imaginavam...), pedindo em surdina ao Todo-Poderoso para a minha freira-professora estar doente e, por isso, não dar aulas. Nunca aconteceu.
Ou das várias vezes que fui convidado por amigos (ou em que me fiz forçadamente de conviva) para participar numas das muitas sessões espíritas que faziam. Tentei afincadamente, mas em vão. O copo nunca deslizou no famoso jogo em que um espírito responde acertadamente às perguntas mais indiscretas que se lhe possam fazer. Sempre que participei, não só o copo não se mexeu, como fui sempre acusado de ser o culpado pelo insucesso do conjunto. "Mau karma" - apontou, um dia, uma parceira de mesa que alegava que a mãe, numa ocasião há alguns anos atrás, se havia transformado em cobra e regressado ao estado normal em menos de uma hora.
Pois bem. Na noite passada, depois de ter resolvido a incómoda inundação da cozinha do apartamento, o divino parece ter cozinhado algo nos meus sonhos.
Não me recordo de tudo porque passei enquanto dormia, mas, numa conjuntura que não posso precisar, o Criador regressava à Terra, anunciando o último dos dias. A dada altura, vi ao longe uma colina de onde Cristo, numa túnica de serapilheira, comandava com o seu ar tranquilo e pacífico uma multidão, também ela serena, que o seguia. Entre episódios vários, mais ou menos desconexos e sem sentido, encontrei o inesperado Miguel, velho amigo de escola com quem há muito não falava, que naquele sonho era dono de um bizarro estabelecimento comercial numa sub-cave, onde os clientes assavam, em mini-espetos sobre as mesas de madeira escura, lagartixas esverdeadas.
Acordei um pouco zonzo, mas ainda assim infinitamente melhor que ontem, sem saber que significado atribuir aquele sonho. Era cedo e decidi aproveitar o dia. O último em Paris.
Durante a manhã, atravessei o bairro judeu e deixei-me envolver pelo quadrado da Place des Vosges, a primeira Place Royal. No meio, envolto na moldura dos edifícios que a balizam, está Luís XIII a pedido de Richelieu, uma das poucas estátuas que sobreviveram à Revolução. Terá sido esta praça, que encerra em si uma harmonia desconcertante entre a ritmo simétrico das fachadas e a cadência da arcada que a sustenta, que influenciou a construção de todas as outras que lhe sucederam nos séculos do Absolutismo, desde a Place de la Bourse em Bordéus, à Praça do Comércio em Lisboa, ou ao projecto nunca acabado da Praça da Ribeira do Porto, ainda que sem rei.
Regressei ao metro e saí junto à Notre-Dame. Caminhei para Norte, passando pelo Hotel de Ville e por uma famosa casa de fotografias antigas, rumo ao Centro Georges Pompidou. Ali chegado, lembrei-me do bistrot Dame Tartine, um óptimo restaurante onde em tempos almocei com a Mika. Resolvi repetir a óptima experiência, até porque a hora tardia aconselhava um bom almoço.
Fiquei na esplanada junto à surrealista Fontaine Stravinski e comi uma belíssima omelete de fiambre e cogumelos, acompanhada por uma rica salada verde. Enquanto almoçava, perdia o meu olhar entre as piruetas dos diversos objectos artísticos da fonte e a arquitectura desconcertante do Centro. Por momentos, veio-me à memória a destruição de Paris por uma enorme vaga de água, a que eu havia assistido num intenso pesadelo na manhã de ontem, do topo da estranha estrutura que ali estava à minha frente. Entretanto, o reflexo forte do Sol num vidro do edifício fez-me fechar os olhos e levar as mãos à face. Assim fiquei uns instantes breves, até que abruptamente sinto um enorme impacto líquido nas minhas costas, consequência de uma queda da simpática empregada de mesa do restaurante que me encharcou quase por completo com água.
Não fiquei com as calças na mão (agora sim, é uma metáfora). Deixei que uma toalha aconchegante do restaurante e o calor abafado que abraçava Paris fizessem o seu trabalho de secagem, enquanto sorria e me deliciava com um fondant de chocolate, acompanhado de gelado de baunilha. Et voilá.
Restabelecido, comecei a minha tarde com um enorme passeio. Abandonei a esplanada em direcção à Ponte Neuf e espreitei a triangular Place Dauphine junto ao Sena. Fiz a promenade ombro a ombro com o Louvre e segui para Oriente através das Tulherias. Da Concórdia tomei o caminho para o Cours de La Reine e contemplei a beleza dourada da ponte Alexandre III em equilíbrio perfeito com o Grand e o Petit Palais, seus vizinhos. Atravessei a ponte e apreciei a imponência dos Invalides, antes de apanhar o metro para a Place de l'Etoile. Aí, exausto, sentei-me junto a um dos pilares do arco e matei saudades de casa através de uma inscrição na parede interior do arco, lembrando as invasões francesas ao Porto.
Rodopiei depois em torno do arco, contando as avenidas que dele partiam e gozando o facto de estar no centro de um eixo de há muito traçado, que partia do coração do Louvre, cruzava as Tulherias, a Concórdia, os Campos Elísios, a Place de l'Etoile e tendia para o infinito via La Defense, no arco gigantesco lá ao fundo, etapa recente da história urbana do homem.
O cansaço havia-se apoderado de mim. Vagueei perdido pelas proximidades em busca de um local agradável para beber umas águas e descansar um pouco. Numa perpendicular à Boulevard Kléber, reparei num pequeno letreiro com letras garrafais "Happy Hour - Bistrot Fin du Monde". Entre as cinco e meia e as sete e meia, o café era gratuito, desde que se fizesse algum consumo. Lá entrei no "Fim do mundo", atraído mais pela economia do lugar do que pelo encanto da decoração. Ainda assim, tinha aquele charme parisiense, dos sofás revestidos com tecidos sóbrios mas vivos, em que tudo parece sempre no seu lugar, sem um papel no chão ou uma beata fora do cinzeiro. Talvez por tudo isso ou porque o café ficava um pouco abaixo do nível do solo, tropecei no degrau de entrada e acabei um pouco atrapalhado junto de uma estátua em pau-preto de Cristo que jazia encostado a um espelho. Sentei-me e espreitei o menu onde os preços não escandalizavam mais que um dos pratos, tido como especialidade da casa: camarão em casca de crocodilo. Chamei o empregado e quando ia pedir uma Evian e o respectivo café, reparo que uma cara familiar me cumprimentava. Miguel! Esse mesmo com quem eu havia sonhado estava ali à minha frente, a cerca de 2000 quilómetros do lugar onde nos tínhamos conhecido, há mais de vinte anos atrás.
Jantamos em Montparnasse e fomos ver a Torre Eiffel à noite a partir do Palais du Chaillot, onde imitei a conhecida pose de Hitler de mãos firmes pousadas sobre o miradouro do palácio para a torre. O Miguel havia imigrado para Paris há dois anos, retomando o negócio de um tio entretanto falecido - o "Fin du Monde".
Acabamos a noite no Gibus, um bar-disco de música Indie junto à Place de la Republique, em que recordamos o Voyage Voyage, dos Desireless, que ambos ouvíamos quando ainda éramos colegas na escola secundária.
O dia não terminou tarde, até porque tinha que preparar a mala. Despedi-me do Miguel, que me havia dado boleia ao apartamento, e confessei-lhe o sonho que havia tido. Ele ficou muito surpreendido e disse-me que, por sua vez, tinha sonhado com bolas de Berlim e suspensórios. O Além tem estranhas formas de se fazer comunicar... Mensagem recebida: O meu destino para os próximos dias será a Alemanha. Ou isso, ou o Miguel precisa de ajuda psiquiátrica.
Antes de adormecer, escrevo finalmente estas últimas palavras:
Amanhã, Paris será passado.
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Nota:
O Ricardo, do Solas na Mesa, faz uma bela adenda a esta viagem. Vale a pena passar por lá!
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