segunda-feira, janeiro 15, 2007

Grandes Vinhetas # 5

Retirada de "A Ilha Negra" (1937) Hergé.

Run 2 - New Order

Desta vez não vou explorar as questões psicanalíticas de Hergé, nem os contornos de intriga política internacional, ainda que tanto um como outro estejam profundamente presentes na aventura. Procuro apenas encontrar a sensação de Norte exprimida através do traço de Georges Remi, no contraste com os mesmos sentimentos de distância, ausência e estoicismo que José Gomes Ferreira desvenda através das palavras de um dos seus extraordinários poemas, transcrito abaixo.
A visita de Tintin à Escócia, no álbum A Ilha Negra, de 1937 (por 2 vezes redesenhado e, por isso, 3 vezes publicado em cerca de 30 anos), transforma-se no cenário perfeito para ilustrar esse sentimento arrastado pelo vento setentrional, através dos soturnos e rudes caminhos de uma pequena aldeia de pescadores, Kiltoch. O nome da aldeia, ao que consta inspirada em Castlebay, numa recôndita ilha do Oeste Atlântico da Escócia, deve derivar da contracção das palavras Kilt, que Tintin veste impecavelmente no seu passeio rumo a Norte, e Loch, palavra comum na húmida Escócia uma vez que significa um corpo de água de alguma dimensão, como um lago ou um golfo. Isto, 4 anos após as primeiras notícias sobre Nessie, o monstro do Loch Ness, supostamente visto por um casal de estalajadeiros, em Maio de 1933, naquele mesmo país.
Como era usual em Hergé, o álbum cruza-se com uma série de questões da actualidade de então, tal como a crise política global que haveria de redundar na II Guerra Mundial (o mau da história é o germânico Müller, em tudo parecido com o escocês naturalizado alemão que trabalhou para os nazis - Georg Bell), ou as referências a filmes que se viriam a tornar de culto, como o King Kong (de 1933) ou o ambiente de espionagem do hitchcockiano 39 Degraus (de 1935).
Nesse rumo pelo norte da Grã-Bretanha ao longo das tiras de "A Ilha Negra", Hergé, profundamente apaixonado pela cultura inglesa, desvenda um país, uma cultura e um determinado ambiente de cores frias e rochas graníticas que tanta semelhança têm com uma certa paisagem da minha cidade do Porto.
Não é só a intensa coloração azul, nem a heróica infinitude marítima, mas também por um Castelo que só dispara tiros de ondas, pelo intenso aroma a maresia que se pressente, pela pureza e brutalidade das rochas firmes ou pela distinção de um iluminado farol coberto por lençóis de nuvens cinzentas carregadas de água e de ilusão. É sobretudo essa indescritível sensação de estarmos num lugar que nos pertence e ainda assim sempre longe de casa...
Gosto de acreditar que as palavras que Paul Morley utilizou para definir a genial banda de Manchester - New Order (cujo nome também parece estar associado ao Mein Kampf de Hitler, de 1924, mas muito vendido na década de 30) - servem também para nos definir, a mim e à minha cidade: "Eles vêem do Norte; do Norte de todo o lugar incluindo do próprio Norte". Pobre vaidade vã, tão ilusória como as nuvens carregadas de uma boreal cidade costeira.

Nota prévia do autor [leia-se José Gomes Ferreira]:
("O mesmo cenário do Rio Douro, anos depois, quando parti para a Noruega num navio de carga")

Nem todas as mãos no cais tinham corpo
algumas até já lá estavam há muito agarradas
ao silêncio que as gelou
- outras caídas no rio
afagavam o casco,
braços de pedras magoadas,
murmúrio de dedos,
lenços de maresia,
Cabedelo,
a Barra
com um Castelo que só dispara tiros de ondas

Mar aberto
com a terra cada vez mais distante e fluida
- enquanto o capitão norueguês
de alegria gorda
dançava com ferocidade de viquingue bêbado
o destino
de suspeitar
que me abria o destino
com o riso-navalha
do rumor das veias.

Em torno nas vagas
Ainda algumas mãos caídas no cais das águas,
invenções confusas,
seguravam o navio,
nadavam,
medusas,
tentavam retê-lo.

E uma delas
Estrangulava uma sereia
por denúncia de pesadelo.


Extra:
Posts que assino por baixo sobre o badalado concurso Grandes Portugueses, na RTP:
Este, do Rui Curado Silva, no Klepsýdra.
Este, do Tiago Barbosa Ribeiro, no Kontratempos.
Este, do Ventanias, no Nortadas.
Este, de João Gonçalves, no Portugal dos Pequeninos
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