terça-feira, agosto 21, 2007

Grandes Vinhetas # 20
(Dia Zero)

Retirado de "Spaghetti em Veneza" (1964) Attanasio/Goscinny.

Divine Comedy - Europe by Train

Foi no último ano do século passado que fiz a minha primeira (e verdadeiramente única) grande viagem de comboio. Na altura, imberbe tardo-adolescente, visitei um velho amigo que dirigia a associação ELSA e que me viria a receber na sua mansarda em Bruxelas, parte de um edifício ocupado por toda a organização.
Movido pela ideia de emancipação e de aventura (como se ir daqui para Bruxelas de comboio fosse como atravessar os Himalaias...), estreei-me, entre outras coisas, no TGV, nos vagões-cama e na solidão do passeio longe de casa. Recordo as conversas que mantive com um cansado par de emigrantes portugueses que viajavam a caminho de Estugarda, de um entusiástico diálogo com um encenador alemão sobre Gil Vicente e que, depois da conversa, acabaria a trocar carícias incómodas com o namorado no percurso acelerado entre Bordéus e Paris, e do meu encontro com Paco Raban numa esplanada parisiense junto ao Centre Pompidou, poucos dias antes do fim do mundo. No regresso, o turbilhão de acontecimentos foi ainda maior ao não conseguir garantir cama no comboio para a madrugada, pelo que partilhei um compartimento com sete pessoas de cada vez, sobretudo espanhóis e alemães, num corre-corre nocturno, de apitos e portas a bater, estação após estação, em que grande parte da noite sobrevivi com uma alemã a dormir no meu ombro e o pé de um espanhol aterrado no meu colo. O clássico balanço do comboio ao som embalador de tum-tum tum-tum, tum-tum tum-tum, tum-tum tum-tum (muito mais que pouca-terra pouca-terra!) inebriavam a resistência ao sono, apesar do permanente abrir e fechar de porta e da sucessão ardente e alternada, vinda da janela, de luz que invadia o compartimento sempre que a locomotiva parava nas estações, e de escuridão durante os percursos bamboleantes na plana meseta espanhola, da qual guardo o intenso perfume a terra seca.
E é nas vinhetas acima reproduzidas que me revejo a caminho de Bruxelas. Desde miúdo que me imaginava percorrendo o mundo por comboio, motivado seguramente pelas viagens pela Europa que, de há muito, fazia com os meus pais, e provavelmente pela proximidade à linha ferroviária que a minha casa de infância tinha. A leitura de "O Crime no Expresso do Oriente" também terá tido, seguramente, uma enorme importância na aura de mistério até porque o fui lendo durante uma dessas viagens com os meus pais. Recordo-me que lia um capítulo por noite (sem grande surpresa pelo desfecho, até porque já havia visto o fabuloso filme de Sidney Lumet), tendo numa delas a possibilidade de o fazer junto à janela do meu quarto de hotel em Amesterdão, que ficava sobranceiro à dinâmica estação ferroviária, onde pela primeira vez vi comboios de dois andares. Por razões que desconheço, mantenho ainda tatuado na minha memória o comboio azul que vi a passar na densa floresta junto à auto-estrada para Berlim, num tremendo dia chuvoso, ou o elegante comboio bege que cruzou por nós veloz na chegada a Trieste, depois da visita ao cemitério/memorial da I Guerra Mundial junto à encosta com a Eslovénia, e um pouco antes de avistar o anoitecer sobre a baía adriática onde a cidade descansava lá em baixo.
É por tudo isto que estas vinhetas aqui estão, mas também porque depois de 19 era impensável não fazer a vigésima para uma das mais fabulosas e negligenciadas personagens BD. Spaghetti, que surgiu pela primeira vez na revista Tintim criado pela dupla Attanasio (nascido e criado em Milão, mas "belga" desde os vinte anos) e Goscinny (provavelmente, como já alguém um dia escreveu, "o melhor argumentista de sempre de BD") a 16 de Outubro de 1957, é um herói desventurado que vive em fuga permanente do seu primo Pommodoro (no original Prosciutto!), que o vai metendo, história após história, em alhadas hilariantes. Os textos sensacionais e o desenho apurado combinam a aventura (com letra minúscula!) com doses intermináveis de humor, graças ao espírito italiano dos dois primos, entre o desenrasca malandro, o engatatão fracassado e o instável pessimista, permitindo amiudadas vezes um retrato de humor ácido sobre a mentalidade mediterrânica de desdém e gabarolice, mas também de humildade e generosidade. Veja-se, no lado mais negro, o comentário do maquinista (nas vinhetas acima) que desconhecendo o pandemónio que vai no comboio comenta: "... enquanto nós estamos para aqui a trabalhar, os passageiros têm a sorte de poderem descansar em sossego" ou o aborrecido turista que aparece em Veneza e Paris dizendo: "Não vale a pena vir ao país deles para ver coisas que nós fazemos melhor no nosso, do que eles no deles!".
Em Portugal apenas seis dos mais de vinte álbuns originais foram editados em português (se exceptuarmos as publicações em revistas), sendo que dois deles são de acesso particularmente difícil: "Spaghetti na feira" e "A vida dupla de Pomodoro", ambos publicados pela, há muito defunta, editora Íbis, na longínqua década de 70.
As vinhetas acima (que estão por ordem cronológica, mas não são consecutivas) são retiradas de uma das mais brilhantes histórias de Spaghetti que começa precisamente com a primeira vinheta acima, em que a personagem central como sempre tenta escapar à amizade de seu primo, arranjando emprego como hospedeiro de um comboio que se dirige para Veneza. Ao descobrir que o quarto número 13 pertence a Pommodoro, o caos instalar-se-à no comboio, terminando tudo à pancada. Na manhã seguinte, os viajantes descem para a plataforma veneziana com olhos negros e braços partidos, e Spaghetti é demitido e forçado a aturar Pommodoro que o envolverá numa trama que inclui detectives, quadros roubados e muitos banhos escusados nos canais de Veneza.
Decidi com estas vinhetas dar o mote para uma viagem de férias convosco. Por motivos que agora não interessa aflorar, este ano não partirei para longe da minha cidade e por isso usarei o blog para encetar uma viagem imaginária. Mas para o comboio não partir apenas com o maquinista, convido-vos a saltarem da plataforma para cá para dentro, dando disso conta na caixa de comentários onde venderei os bilhetes. Amanhã partiremos e já não dormimos no Porto. Agora só cá voltamos lá para Setembro.
De hoje em diante, o Comboio Azul avançará mesmo. Venham comigo!

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5 Carruagens:

Anonymous Anónimo said...

Como sei que os bilhetes vao esgotar rapido, eu sou a primeira a reservar o meu! Esta tua ideia e' EXCELENTE!

Confesso que estava a contar que um dia escrevesses sobre esta tua viagem. Tambem eu tenho boas recordacoes dela :-) Bem de lembro do "nosso Ministro das Financas" a correr atras do comboio onde ias...

Vamos la' a todo o vapor! Eu ja' ca' estou! Tum-tum Tum-tum U-U

terça-feira, agosto 21, 2007 1:42:00 da tarde  
Blogger PCS said...

Eheheheh reserva um que as pilhas da máquina já estão a carregar. Se a viagem do Douro foi hilariante e foi um só dia, imagina esta!

terça-feira, agosto 21, 2007 2:09:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Count on me! Fazem descontos para crian�as e "idosas"? ;)

terça-feira, agosto 21, 2007 5:04:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

os comboios são parte do meu dia-a-dia e imaginário, por isso não faltarei a esta viagem "azul"!

(desta vez parei por esta estação:)

quarta-feira, agosto 22, 2007 12:19:00 da manhã  
Blogger JRP said...

Kate,

Inesquecível esse episódio. A cara do Tiago a dizer adeus... hilariante.
Vocês foram fantásticos!
Já sabia que podia contar contigo. Vai partir!

PCS,
Esse passeio no Douro foi cinco estrelas. AI se eu publicasse as fotografias que tenho desse dia... ainda íamos presos!

Just a girl,
Descontos? :) é tudo de borla, basta a imaginação. E aí, crianças e idosas são imbatíveis. Welcome aboard!

Ziza,

Fizeste bem. Essa linha que te pertence também foi minha na infância, como sabes. O comboio é teu!

quarta-feira, agosto 22, 2007 4:53:00 da manhã  

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