sexta-feira, janeiro 19, 2007

Grandes Vinhetas # 6

Retirada de "O refúgio da Moreia" (1957) Franquin.

From the bench at Belvidere - The Boo Radleys

"Quando vejo um Franquin (...) digo para mim: Como podemos nos comparar? Ele é um grande artista, à beira do qual eu não passo de um mísero desenhador."
Hergé

Tenho para mim (e sei que não estou sozinho nisto) que uma das mais fabulosas cenas cinematográficas de sempre é aquela em que, no filme Blow Up (1966) de Michelangelo Antonioni, Thomas (David Hemmings) nos mostra, através da revelação de uma série de fotografias tiradas casualmente num parque, a ocorrência de um assassinato. A cena, absolutamente extraordinária, tem o seu encanto precisamente na forma como, apesar do silêncio e isolamento do protagonista, nós acompanhamos o seu raciocínio através da sua interpretação corporal e acabamos por sentir a mesma ânsia incontrolável na observação da próxima ampliação para descobrirmos o que de facto havia acontecido.
Ora, o processo no qual esta vinheta de Franquin do livro "O Refúgio da Moreia" das "Aventuras de Spirou e Fantásio" se inclui é em muito parecido com a referida cena de Blow Up, talvez nem tanto no silêncio (ainda que Spirou pouco explique), mas na forma como o autor nos encaminha para a solução através do olhar e da postura céptica de Fantásio nas deduções do velho amigo. Spirou encena o percurso e a posição do criminoso colocando-nos (a nós e a Fantásio) no lugar deste.
A vinheta, parte de um conjunto de tiras apaixonantes, reflecte precisamente o momento em que Fantásio se apercebe da posição privilegiada que, do cimo daquela árvore onde ele está empoleirado, um atirador teria para alvejar um carro a passar n' "a estrada lá ao fundo".
O que torna a imagem ainda mais cativante é a forma como Fantásio (ou o leitor) se sente escondido entre a folhagem, transmitindo uma incontrolável, apetecível, segura e confortável sensação de voyeurismo, ao mesmo tempo que permite a reconstituição do crime como no filme Blow Up, potenciada pela presença dos marcos destruídos na estrada e das marcas do despiste, causados pelo automóvel baleado.
A vegetação acaba por ter um papel absolutamente fundamental no exacerbar do secretismo do lugar e na função de moldura ou janela para a estrada, criando um ambiente de romantismo naturalista, oposto ao chamado disencumbering (ou desobstrução) neoclássico, e no seguimento da velha tradição vinda da arte urbana medieval: o objecto de contemplação é ofuscado por um conjunto de elementos que representam o contexto geográfico e permitem a sua descoberta por etapas e não de imediato.
Em mim, que sempre me senti um voyeur em potência, esta vinheta passou a servir de modelo fotográfico (como aliás se pode perceber pelo post "Em queda"), e dela me recordo tantas e tantas vezes quando uma janela indiscreta me permite a contemplação sorrateira.
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A ler:
1 - Por falar em vegetação, o
Super-Bonsai, no Dias com Árvores, sobre uma árvore peculiar naquele nosso lugar.
2 -
Este excerto de entrevista a Federico Fellini, a propósito do filme Amarcord, no In Absentia.
3 - A interpretação de
resultados diferentes para a mesma pergunta no Corta-Fitas e no Portistas de Bancada, pelo Nortadas.
4 - Este paralelo no A Natureza do Mal.

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