terça-feira, novembro 14, 2006

Do outro lado

As pontes, as cidades e o Douro, no anoitecer da passada sexta-feira.

Aos pés desdobrava-se num abismo a montanha pedregosa e alcantilada, banhada lá em baixo mansamente pela água do rio. A um lado acastelava-se a casaria da cidade em anfiteatro; a torre dos Clérigos, e as agulhas das torres mais altas recortavam-se no fundo luminoso do poente; a Ponte Pênsil figurava-se naquela altura um fio de arame ligando as duas margens, e sobre o cimo da montanha oposta e declivosa contornava-se duramente o Convento do Pilar no fundo do céu, maciamente esbatido em tons rosados.
Júlio Lourenço Pinto (1879) Vida Atribulada

Espreito sobre o muro antigo em pedra, como o fazia em miúdo ao colo do meu pai.
Naquele lugar, mesmo antes de entrarmos no Citroën e logo depois da visita de domingo à minha cúmplice avó, queria sempre observar o Douro e o Porto a partir desta varanda, onde um muro demasiado alto me impedia de o fazer sem a ajuda paterna.
Talvez por isso, talvez por este ritual de finais de tarde dominicais, aprendi desde pequeno a ver a minha cidade desta perspectiva, onde a face oculta da ponte Luís I se revela, revestida num quadro negro, quase dantesco, da amálgama desordenada do aglomerado.
Vista deste lado, a cidade é mais sombra que luz, mais mistério que história, mais matéria que espírito. O centro histórico aparece lá longe, por trás da muralha do século XIV, parecendo muito mais distante do que de facto está, mas desvendando a diferença temporal da construção destes dois lugares.
Trazido pelo frio que escorre pelas margens do Douro, pela velocidade avassaladora do comboio que passa mesmo ali na escarpa ou, finalmente, pela memória da vida dura e crua daqueles que montaram o espaço urbano do Porto a Oriente, na árdua labuta entre a máquina de tecer o fio e a taverna de tecer o fígado, vejo-me percorrido por um arrepio gélido e invadido por uma sensação de anacronismo, como se mais importante que a deliciosa paisagem que daqui desvendo agora, fosse ter estado ali, há 200 anos atrás, quando esta rua se abriu, quando os ribeiros corriam vertente abaixo, quando três velhas quintas suburbanas se ali encontravam: a do Prado, pertença do Bispo; a do Reimão, da nobre família Cirne; e a da Fraga, que havia pertencido aos Jesuítas.
Acompanho com o olhar o sentido decrescente do Sol, mas impeço os meus olhos castanhos de moverem os antigos moinhos que por aqui existiram com gotas de água salgada, para, mesmo antes de entrar no automóvel que agora eu conduzo, espreitar uma última vez sobre o muro (que entretanto ruiu) as luzes da cidade que se vão acendendo ordenadamente, e sorrir perante a sinuosa curva final da rua de Gomes Freire, herança orgânica de um velho caminho rural e metáfora viva do Porto migrante de XIX.

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4 Carruagens:

Blogger PCS said...

Um olhar magnifico sobre esta cidade e em particular da parte oriental.Belo texto.

terça-feira, novembro 14, 2006 1:20:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

desta ganhaste,a parte oriental da cidade para mim é quase desconhecida... a parte dos becos e das ruelas.

continua com as boas fotos... e a visitar as fotopalavras!

terça-feira, novembro 14, 2006 7:23:00 da tarde  
Blogger Luzinha said...

Linda foto...
lindíssimo texto...
Adorei!

:)

terça-feira, novembro 14, 2006 11:18:00 da tarde  
Blogger JRP said...

ganhei?
Anyway, obrigado a todos!
:-)

segunda-feira, novembro 20, 2006 3:19:00 da manhã  

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