A fonte das Fontainhas, onde ano após ano reside a genuina cascata sanjoanina, fotografada em final de XIX por Domingos Alvão. The Stills - Changes are no good
"Nas Fontainhas é de estalo! (...)
A noite veio das mais fluidas, com um céu azul-escuro, pouco luar. Eles saíram no alvoroço meridional das festas, e Flora sentia o coração com risos, e achava lindos os balões venezianos das ruas, em túneis feéricos, de indianos brilhos. Ao pé das cascatas o povoléu empurrava-se. A música tocava o São João. E os bandos de festeiros passavam com violência, de braços dados, chapéus de palha, cantarolando em coro. A alegria doidejava, peninsular e rumorosa com a tontura do vinho e de amores. Das janelas cheias deitava-se fogo, dentro corria um bem-estar risonho e na rua compacta ia um frémito – como se em toda aquela gente houvesse umas grandes núpcias de coração. Os buscapés rabiavam; (...) e no azul veludoso os foguetes estoiravam em girândolas, e punham lágrimas."
Júlio Brandão (1895) Farmácia Pires.
Prova que o São João do Porto, ao contrário de outras festas, outros santos e outras marchas, é e sempre foi uma manifestação genuinamente popular (e não uma criação do Estado Novo há 70 anos atrás), foi o referendo promovido pelo Jornal de Notícias no princípio do século XX (1911) que oficializou o 24 de Junho como feriado oficial da cidade. Havia sido pedido aos leitores do diário portuense qual a data que pretendiam como feriado para a Invicta e os resultados foram os seguintes:
24 de Junho, dia de São João, 6565 votos
1 de Maio, dia de São Pantaleão, 3076 votos
8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, 1975 votos
9 de Julho, dia da entrada do exército liberal no Porto após desembarque no Pampelido, 8 votos.
O resultado foi esclarecedor: o São João venceu de forma categórica.
Sublinhe-se contudo que a origem desta celebração é muito anterior a este referendo, ou inclusivamente a qualquer ligação judaico-cristã (aliás, já na Idade Média Fernão Lopes escrevia que a noite de São João era a de "maior folgança popular na cidade", e as festas cheias de "animação e entusiasmo desabrido"), sendo muito comum em diversos povos indo-europeus. Festejava-se a entrada do Verão com a presença do Solstício de Junho em que perpendicularmente o Sol atinge a latitude mais boreal, sobre o trópico de Câncer. Daqui até aproximadamente o Natal (21/22 Dezembro) os dias vão lentamente diminuindo de dimensão, comprovando mais uma vez as relações religiosas com os movimentos cósmicos.
Daí a provável oposição fogo/água que se verifica entre as labaredas das fogueiras e dos balões com a água das cascatas; ou na alegre espera pelo nascer do Sol, novo fogo perene na linha do horizonte, e altura ideal para esfregar no corpo o orvalho madrugador enquanto acalentador da fertilidade feminina, ao som das vozes que no passado e em coro cantavam:
Orvalheiras, orvalheiras, orvalheiras,
viva o rancho das moças solteiras.
O culto do fogo e a bênção da água são o caminho seguro entre olhares afrodisíacos que se negoceiam na noite de todos os aromas, do manjerico ao alho-porro, da sardinha assada ao suor proletário. Incontornavelmente, o São João está carregado de volúpia desde o Passeio das Fontaínhas à antiga tradição da Alameda da Lapa, local importante de celebração Sanjoanina do século de oitocentos, ainda que mais burguês e endinheirado.
A sorte de ter um avô cheio de saúde e absolutamente lúcido permite-me com frequência fazer viagens ao passado através das suas palavras nostálgicas e carregadas de saudade.
Por entre algumas gargalhadas sonoras, nos diversos encontros que vamos tendo, ele vai-me desfiando o novelo de memórias antigas em festejos sanjoaninos da década de 30 ou do tempo da II Guerra.
São sempre histórias suadas dos amigos tecelães ou do escritório onde trabalhava, de um sentimento profundo de revolta pela opressão do Estado anti-democrático ou negramente humorísticas de uma miséria alegre, por entre as ilhas de São Victor ou o pé descalço em Gomes Freire. Mas quase todas desaguam no Passeio das Fontainhas, em qualquer São João libertino, onde a distância entre a pândega e a embriaguez são proporcionais à escarpa entre a Alameda e o Douro lá em baixo.
Donde vindes, S. João,
com a capa de estrelinhas?
- Venho de ver as fogueiras,
do Largo das Fontainhas.
Antiga quadra Joanina, final de XIX.
Amiúde, passeamos por amigos que já partiram que, entre uma meia lata (expressão do Porto Oriental para uma caneca de tinto) e uma isca num pão, construíam quadras e rimas sanjoaninas, depois da dureza profunda de um dia de labuta.
Há uns anos atrás, peguei em papel e lápis e ousei transcrever as palavras cantadas que o meu avô soletrava sorrindo à mesa do jantar:
Deus queira que o tempo traga
Aquele ar da sua graça
Diz que o São João de Braga
Que nos rogou uma praga
Para que a festa não se faça
São João és um Lapónio
Se saíres das Fontainhas
Pois São Pedro e Santo António
Estão levados do demónio
Por não terem tais festinhas
Siga avante a mocidade
Já que temos liberdade
De cantar a noite inteira
Vamos para as Fontainhas,
Ora toma Mariquinhas,
Tudo dança a Ramaldeira.
Este mundo são dois dias
Óh meu rico São João
Prolongai nossas folias
Leve o Diabo a Paixão.
Ora aqui está um belo pedaço de património intrínseco de um certo Porto, escrito e cantado há 70 anos atrás, em qualquer tasco manhoso da Praça da Alegria.
Sentem-se os ventos quentes de leste no hábil uso das palavras avante e liberdade. Pressente-se a rivalidade regional na alusão ao desdém dos outros santos e da referência a Braga.
Quando, na actualidade, se percebe a tentativa de "elitizar" o São João, através da sua passagem para outros espaços da cidade, como tem sido tentado nos últimos anos, ou da sua ligação a outras classes sociais, desfigurando o carácter operário do mesmo, compreende-se a angústia de um tal Belmiro Lima que, na longínqua década de 30 do século XX, já previa esse destino.
Bem sei que o São João do Porto não terá começado nas Fontainhas, mas algures nas ruelas soturnas do Centro Histórico e que posteriormente se difundiu de forma alastrada pelos diferentes bairros e freguesias, tornando-se numa festa descentralizada. Mais do que isso, Alberto Pimentel referindo-se à primeira metade do século XIX afirmou mesmo que: "N'aquelle tempo, o S. João do Porto era todo ocidente, para os lados do mar. Ao Passeio das Fontainhas, sobre o Douro, apenas iam os bairristas beber a água da meia noite ou tomar as orvalhadas". Provavelmente, Pimentel aludia à freguesia de São João da Foz, cuja toponímia explica as celebrações, e aos campos de Cedofeita, na altura limites urbanos ocidentais do Porto, onde o povo celebrava em piqueniques.
Mas é seguro que a partir de meados de XIX, as Fontainhas passaram a ser o coração das celebrações (como o prova, entre tantas outras obras, o texto em epígrafe de Júlio Brandão), consequência provável da criação da cidade finisecular a dois ritmos : a Ocidente a do consumo, rica e elitista; a Oriente a da produção, pobre e castiça.
Romper com esta herança, genuína e antiga, parece obra de quem não conhece a cidade e meio caminho para desvirtuar a festa, normalizando aquilo que era diferente e autêntico.
Lapónios é o que eles são!
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Muitos parabéns ao Avatares de um desejo e ao ...bl-g- -x-st- , dois bastiões da blogosfera nacional. Continuarei leitor, como o fui nestes 4 anos. Para além do mais, são azuis e brancos como eu.
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