Identidade
"As duas praças, a que Ramalho Ortigão allude, haviam sido construídas, uma na Boavista, outra na Aguardente [actual Praça do Marquês do Pombal]. Acabaram por não ter ninguem; a tauromachia portuense deu em vasa barris. Mas, passados annos, o touro tornou a passar do prato para o circo. Construiram-se duas novas praças, uma na Boavista, outra na serra do Pilar, em substituição d'aquellas. [...] Mas o povo portuense não tem educação de toureiro, nem condições para o ser. [...] De modo que a tauromachia no Porto é um divertimento emprestado, que mette touros e campinos do sul. Estou em dizer que, apesar das duas praças actuaes, o Porto acha mais sabor ao boi no prato do que ao touro na arena."
Pimentel, Alberto (1895) O Porto na Berlinda.
Alberto Pimentel, a cinco anos do século XX e na sequência de um memorável texto de Ortigão na obra "As praias de Portugal" em que refere que as arenas de touros do Porto "começaram a apodrecer" de vazias, aponta a existência de duas recentes praças de touros no Porto, apesar da curta apetência do portuense para a lide. Não se enganou, se o seu intuito era dar a entender que o negócio não teria futuro. Em poucos anos, as novas praças acabaram também por desaparecer, vergadas à sua solitária existência.
Anos antes, tal como a Mica lembrou, já tinha sido um homem do Porto (ainda que nascido em Bouças, a actual Matosinhos) a despoletar a proibição das corridas de touros, a bem do progresso e da moral da nação. Passos Manuel era (para além de um brilhante orador, de um prestigiado estudante, de um hábil advogado e fervoroso liberal) um homem à frente de seu tempo (seguramente à frente deste tempo também...), para quem "um bom princípio vale mais do que um homem".
Não sei se os valores que a LPDA aponta são verdadeiros para o país inteiro (74% dos portugueses serão contra a tourada), mas não tenho dúvidas que para a minha cidade, o Porto, eles pecam seguramente por escassos. Haverá por aqui quem também as aprecie, mas uma larguíssima maioria dos restante portuenses interrogar-se-à da sanidade mental desses outros.
Na verdade, desconheço de onde virá esta forma de estar que faz com que esta cidade se sinta amiudadamente como corpo estranho ao país que nos é oferecido diariamente nos media (a este propósito, será interessante (re)ler este texto de JPP, de Maio passado, em particular na parte relativa à reabertura do Campo Pequeno). Virá esta forma de estar e sentir da influência da enorme comunidade nórdica, dominantemente inglesa? Da ligação a D. Pedro IV e aos valores do liberalismo? Independentemente da sua raíz, este concentrado de Norte que é o Porto, foz onde desagua o sentir e pensar de todo o setentrionalismo português através da maior bacia hidrográfica da Península, tem em si, desde há muito, os princípios fundamentais que nortearam o espírito da república, da liberdade e do respeito pela Natureza. Foi aqui que se fez a resistência liberal, em forma de cerco, contra um país absolutista (fidalgo, tauromáquico e anacrónico) e onde a primeira e efectiva tentativa de instauração da república em Portugal teve lugar, em Janeiro de 1891.
E, nestas coisas, a identidade e a memória dos lugares tem uma força impressionante, que nenhum regime, revolução ou ditadura pode mudar. Jamais duvidem disto.
Sobre a robustez dos argumentos contra a referida prática, não valerá a pena aqui esgrimi-los, até porque este post vem na sequência do que a Mica, o Bruno e o Tiago (curiosamente, todos indefectíveis portistas) já escreveram sobre o tema e que eu assino por baixo. Apenas acrescento que argumentos como a tradição ou o prazer dos animais pela lide são tão idiotas como o nome do bar da Juventude Popular do Porto: Ditadura bar. Até porque convém lembrar que estes meninos, para além de outras manifestações de pura infantilidade inconsequente, foram os últimos a propor uma "corrida à portuguesa" (o nome é elucidativo! e daí as minhas dúvidas no que se refere aos valores estatísticos apresentados) na cidade invicta, que, como tentei demonstrar, é histórica e epidermicamente contra as touradas.
Sobre este tipo de artistas, já apontava Camilo, em pleno século XIX, que "houve aqui há tempos, no Porto, quem alvitrasse a ideia de devolver a Lisboa o coração de D. Pedro IV. Os romanos autênticos também degeneraram..."
Ainda que pejado de ironia, foi também o mesmo Camilo que escreveu um dia, no romance "A Sereia", que: "de facto, nós os portuenses, em que pês a nossos detractores, já somos europeus há muito mais tempo do que geralmente se cuida. Há quase um século, já os nossos antepassados conheciam a bernarda patriótica e a ópera italiana; duas coisas sem as quais não há europeísmo, nem progressismo possível."
P.S. 1 - Apesar de ontem não ter sido celebrado por aqui, sublinhe-se que, tal como esta fonte, o nosso comboio azul é republicano e concorda em absoluto com o que aqui foi escrito (e que, parecendo que não, tem ligação profunda com o tema principal deste post), assim como se divertiu imenso com esta comparação. Como se vê, para além de republicano, o comboio azul é democrático e dá voz a todo o espectro político. Vê-se que é um comboio do Porto.
P.S. 2 - E, afinal, o que é que tu perguntaste?
Etiquetas: Porto, Psicanálise
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Já para não falar da tourada do Sporting...
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