Tempo ausente (terminado, com epígrafe alterada)
"Em vez de reflectir no que convém que faça, vivo sob a influência dos acontecimentos consumados, preso ainda no recente turbilhão que me arremessou para longe do meu centro natural... De resto, talvez eu chegue a ver claro no futuro se conseguir dar-me conta da vida que vivi durante todo o mês passado."
Fiodor Dostoievski (1867) O Jogador.
Nas ruas, o burburinho surdo, confuso, quase tenso perpassa veloz entre a multidão no formigueiro de Santa Catarina, ali mesmo ao lado. Na varanda do Bolhão, ele ecoa distante na triste cadência das luzes que se acendem e intensificam à medida que o céu se enegrece para a noite. No ar, por esta altura, entre o leve odor a canela e a mel, sente-se a cumplicidade entre os pares que rastejam endiabrados e inebriados, de loja em loja, à procura de soluções para a demanda de presentes da noite que se aproxima, e a angústia entre os ímpares que procuram um aconchego numa carteira alheia ou numa esmola perdida por um qualquer indivíduo enternecido pela quadra.
No Bolhão, o ritmo abranda. As últimas vendedoras arrumam as mercadorias enquanto mercadejam uma última fruta, entre os talos de couve e as escamas de peixe no chão, provavelmente ocupadas a magicar entre o que farão para o jantar e as derradeiras lembranças a comprar no caminho para casa.
Em tempos, o lameiro criado pela enorme bolha de água que ainda alimenta o chafariz lá em baixo (e de onde deriva o nome Bolhão), vivia gelado em Dezembro numa velha quinta periférica à cidade. Após o Cerco, o higienismo de XIX tentou eliminar as pequenas feiras que se faziam por toda a cidade, para que estas se concentrassem nos novos mercados do Anjo (onde actualmente jaz, inerte e vazio, o Clérigos Shopping) e do Bolhão.
Na altura, e até à década de 20 do século passado, o mercado do Bolhão era um espaço rectangular aberto, rodeado por um gradeamento semelhante ao que, ainda hoje em dia, cerca o jardim de São Lázaro, colocado aproximadamente na mesma altura. Através da acção do tempestuoso Elísio de Melo, foi erguido, há cerca de 80 anos atrás, o belo edifício do mercado, marcado pelos elegantes torreões arredondados, e pela vida comercial que, passo a passo, foi envelhecendo sem renovação (nas pedras e nas gentes), à imagem da própria cidade que o mercado abastece.
Em silêncio, gelado e incandescido pelas luzes que piscam nas ruas da cidade, capto o instante na minha máquina, para que aquele frenesim pré-Natal (o meu São João de Inverno) não se apague jamais da minha memória. O consumismo Natalício é mal menor perante o abandono cruel e duro dos restantes dias escuros, do ano que aí vem.
Extra:
1 - Dar os parabéns (atrasados!) ao Da Literatura pelos dois anos de idade de textos de uma qualidade inquestionável e oferecer solidariedade neste combate.
2 - Destacar mais uma excelente fotografia Patchouly no Não sei pra mais.
3 - Aplaudir a crítica a uma das mulheres mais insuportáveis do planeta, no Portugal dos Pequeninos.
4 - E satirizar o questionário do Corta-Fitas sobre quem vai ser o próximo presidente do FCP. Falta aí o mais que provável Antero Henriques, meus amigos...
Etiquetas: Porto, Psicanálise
5 Carruagens:
Fantástica foto. Espero pelo texto, vai lá dormir.
obrigado, já o tens aí.
Abraço,
Obrigado pelos parabéns e solidariedade.
Bom ano e mais ecossolidario.Façamos do Porto uma cidade mais sutentavel.
Abraços
Boa foto e excelente texto.
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.
<< Home