Grandes Vinhetas # 4
Desta vez, em vez de uma, coloco duas vinhetas de um álbum de Bd: "Ric Hochet - Investigação no passado". A razão prende-se com o facto das duas vinhetas funcionarem em conjunto, ainda que no livro estejam separadas por 12 páginas. A primeira, que é também a primeira do álbum, passa-se 35 anos antes do normal desenrolar da história policial que habitualmente acompanha as aventuras de Ric Hochet. Esta personagem, em muitas dimensões parecida com Tintin (repórter, investigador e justiceiro), apareceu nas páginas da revista que leva o nome do menino de Hergé há cinquenta anos atrás, mantendo ainda hoje uma vitalidade invejável, ainda que os seus dois autores já estejam na casa dos 80.
Ric Hochet, que em Portugal, a par de muitos outros heróis da Bd franco-belga, é muito negligenciado, é de uma popularidade extraordinária tanto na França como na Bélgica, como se constata por este mural na Rue du Bon-Secours, em plena capital belga, e pelo facto da estância balnear onde Tibet (o desenhador) passa as suas férias, Roquebrune-sur-Argens na Côte d'Azur, possuir uma Boulevard (Bd.) Ric Hochet.
E é precisamente numa estância balnear (em muito parecida com a referida Roquebrune-sur-Argens) que a acção de "Investigação no passado" decorre, mais propriamente numa tal de Arestat, onde Ric Hochet terá que resolver um caso que mantém relações com um outro que lá havia decorrido em 1938 (os tais 35 anos antes da data de produção da história) com o seu pai por intérprete.
A demanda, sempre interessante e num ritmo que nos mantém presos tira atrás de tira, permite um jogo de confrontação entre os dois momentos cronológicos, quer nos contrastes ténues entre Ric Hochet e seu pai (o que leva o leitor a confundir os dois no início da história), quer nos contrastes territoriais absolutamente perceptíveis e cativantes.
Na verdade, o álbum é uma autêntica aula de geografia urbana histórica aplicada a uma estância balnear, de que as duas vinhetas acima reproduzidas são bem ilustrativas. O mar, que não aparece em nenhuma das duas imagens, sente-se, na segunda vinheta, na presença das gaivotas sobre as escarpas, mas também no crescimento de novos edifícios (dos quais vemos apenas as traseiras) que traduzem uma presença (marítima) forte e atractiva por trás da encosta, assim como no estado de ruína do edificado à medida que a distância ao mar aumenta, em oposição com o que se passava 35 anos antes.
O contraste acentua-se semelhantemente no estado de tempo (quando a vila ainda não seria destino turístico até o clima era agreste...) e nos bólides conduzidos pelo pai na primeira imagem e pelo filho na segunda (o seu famoso Porsche 911 amarelo), mas também no uso da sinalética viária (limite de velocidade 60km/h) e turística (Arestat / A sua praia / O seu casino / O seu picadeiro / As suas falésias), bem como na qualidade infinitamente melhor da estrada. Curiosamente, o dito turismo cultural, que podia ser explorado no velho cruzeiro ou na igreja no cimo do promontório, mantém-se aparentemente esquecido nesta imaginária vila junto ao mar, mais propensa ao turismo balnear.
E é também numa estância balnear que decorre a canção de Morrissey, aludindo a um lugar que apesar do eterno glamour, encanto e apelo de diversão a que está associado, acaba por também redundar em rotina, solidão e miserabilismo no permanente jogo da sazonalidade, que leva o compositor inglês a clamar pela bomba nuclear, hiperbolizando o seu sentimento de angústia.
As cidades costeiras, lugares conhecidos pelo passeio-promenade (ou o calçadão como agora anda na moda dizer), pelos miradouros, pela areia, a água e as cores vivas do Verão, são, no resto do ano, lugares onde se passeiam a desolação, o abandono e as cores cinzentas e amorfas como tão bem Duchâteau e Tibet contrastam nas vinhetas acima ou como Morrissey expõe na sua controversa canção, que inúmeras interpretações tem gerado.
Trudging slowly over wet sand
Back to the bench where your clothes were stolen
This is the coastal town
That they forgot to close down
Armageddon - come Armageddon!
Come, Armageddon! Come!
Everyday is like Sunday
Everyday is silent and grey
Hide on the promenade
Etch a postcard :
"How I Dearly Wish I Was Not Here"
In the seaside town
...that they forgot to bomb
Come, Come, Come - nuclear bomb
Everyday is like Sunday
Everyday is silent and grey
Trudging back over pebbles and sand
And a strange dust lands on your hands
(And on your face...)
(On your face ...)
(On your face ...)
(On your face ...)
Everyday is like Sunday
"Win Yourself A Cheap Tray"
Share some greased tea with me
Everyday is silent and grey
P.S. - Acabo de me recordar de outra canção que aqui poderia ter colocado: Summer's Over dos Rialto. Fica para a próxima.
Etiquetas: Banda Desenhada
3 Carruagens:
excelente post. Por tudo : vinhetas, texto, musica e pela interligação de tudo.
parabens, do melhor que tenho visto (lido)
Muito obrigado até porque os textos relativos a Bd quase nunca têm comentários.
Fabuloso! Sempre gostei muito do Ric Hochet e deste livro em particular e, em miúdo, a contemplação e comparação entre estas duas vinhetas e o que elas deixam nas entrelinhas fascinou-me bastante. Só uma dúvida: a construção no alto da falésia é mesmo uma igreja? Eu acho que é o solar onde vivem os irmãos em torno dos quais gira esta aventura. Sempre tive curiosidade de saber qual o local que tinha inspirado o autor nesta história e agora, graças a este blogue, já sei. Excelente trabalho, sem dúvida!
Paulo Rodrigues
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