Em queda
Vinda não se sabe de onde, uma brisa agita melancolicamente as últimas folhas dos plátanos das Fontainhas, que se preparam, na sua forma enrugada de ser, para deslizar em queda lenta para o Douro. Lá em baixo, o rio terno e azul espera-as em movimento processional para o mar, num ritmo cadenciado, magoado e triste.
A esta hora, o Sol pinta os ramos das árvores seculares em tons áureos em mate, como que antecipando o destino funesto que reserva para as folhas, enquanto estas se acotovelam em ânsia para o mergulho esperado, tal qual o idoso acamado que aguarda em solidão o último suspiro, sem qualquer seiva que o agarre à vida.
O rio vai lento, adoçado pelo aroma a vinha que traz de lá longe, onde na sua juventude rasgou a meseta ibérica e preparou o terreno para os socalcos da vida da gente. As folhas, uma atrás da outra, decoram como um véu negro a face mais pálida do rio, contando os segundos de um tempo que desagua em direcção ao mar.
Presa também por um fio, com pouco que a agarre a esta vida, a ponte da Casa Eiffel sobrevive abandonada sobre as águas do rio dourado, nas margens do esquecimento da cidade.
Paro tantas vezes por aqui, em fins de tarde como este, assistindo às cerimónias fúnebres que, ano após ano, os plátanos das Fontainhas oferecem à velha ponte em ferro, como homenagem por mais de um século de companhia, enquanto em uníssono sussurram baixinho, como os velhos que balbuciam as últimas preces numa missa, a Loa ao Porto de António Manuel Couto Viana:
Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
O corpo amuralhado de granito,
Cabelo d'água, à névoa, ao vento, exposto,
Face esculpida em grito.
Braços de ferro, arqueados, desmedidos,
Sobre o fluir dos barcos e do barro.
E um rumor antigo
Na voz das tuas ruas e mercados.
Vestes de escuro e enfeitas-te de luzes
Antes do Sol perder seu oiro pálido.
E das torres com sinos e com cruzes
Acenas ao mar largo.
Bulícios de cafés (há mais de mil)
Entornam-te nas veias graça e fogo.
E o lírico torpor dos teus jardins
Suspiros e repouso.
Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
Coração, não de Pedro, mas de pedra
Com sangue fértil, vinho generoso
A gerar alma e terra.
Este post:
- Pertence à série Jardins de Inverno, do Abrupto.
- Foi parcialmente inspirado no post Pequena Vertigem Televisiva, do Da Literatura.
- É dedicado ao bandido que julga que eu gosto de Francesinhas. (Quando vieres ao Porto, e se ainda não tiveres arranjado Ric Hochet, procura na Tintin por Tintin, loja de coleccionismo/Bd na rua da Conceição. É, segundo tenho ouvido, das melhores do país! Tem lá tudo!)
Etiquetas: Natureza, Porto, Psicanálise
6 Carruagens:
Já sou uma visita regular do teu blog e desta nao podia passar sem deixar um abraço.
Continua o bom trabalho
Hugo Sousa
Grande foto.
Gosto do pormenor de "acenas ao mar largo" estar afastado.
excelente texto! adorei. Tem tudo a ver.
e os Ride! que saudades que tinha deste som!!
Muito obrigado pela dedicatória! [então como é possível não gostares de francesinhas?!]
Como sempre vocês surpreendem-me :o)))))
Tenho andado ausente, mas já regressei para ver estas maravilhas :o))))
Hugo Sousa? O meu caríssimo amigo de longa data? Que bom ver-te por cá! Vai dando notícias!
Francisco,
Entre uma tradição com 50 anos e uma com 600, opto pela segunda. Que ninguém me ponha um prato de tripas à frente, que eu não consigo parar...
Aos restantes, obrigado pelas palavras simpáticas!
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