Carnaval no Porto (Finalmente, com texto!)
"O Porto mascara-se n'esses tres dias; cada rua é um palco, cada casa um salão de baile."
Arnaldo Gama (1857) O Génio do Mal.
Entre outros motivos, o medo do ridículo afastou a minha geração (a primeira umbilicalmente mediática) do Carnaval. Na era da imagem, do virtual e da aparência, as gentes temem a afirmação da máscara com medo de serem apontados como diferentes entre iguais ou de esta destapar o outro disfarce que alienadamente usam no dia a dia.
Noto isso nos meus amigos que, nos três dias de folia e à medida que abandonávamos a adolescência (que, no meu caso, dura lamentavelmente até à actualidade), cada vez mais apareciam no seu traje quotidiano acompanhados do chavão: "Eu não ligo muito ao Carnaval" ou à bizarria: "Este ano vou passar um Carnaval tranquilo", que é, por definição, a antítese da época. As noites de segunda-feira gorda passaram a ser cada vez mais iguais às outras trezentas e sessenta e quatro: uma desculpa para catrapiscar um parceiro/a e/ou para beber para além da conta.
Noto isso também na minha cidade que, ano após ano, foi perdendo a animação de rua, as vestimentas estranhas, os disfarces elaborados, ou os confetis e serpentinas que decoravam o espaço público, sendo que o fenómeno se alastra a quase todas as cidades do país que, das duas uma, ou ignoram a ocasião, ou abrasileiram a festa de forma lamentável e inapropriada (como aliás a Miss Pearls, no Corta-Fitas, lembrou através de um texto antigo de Francisco José Viegas).
É por isso que, ao contrário do que é costume, aplaudo a iniciativa da CMP de apoiar a festa de Carnaval na baixa do Porto. Os mesmos amigos de que falei há pouco costumam acusar-me de maledicência em relação ao actual presidente da edilidade apenas por ele não apoiar o meu clube. É certo que isso também me incomoda, não tanto pelo apoio (que nós dispensamos…), mas pela antipatia mal-educada com que trata uma das instituições mais bem sucedidas do Porto. Mas o que sempre me apoquentou na actual CMP tem sido a forma como esta despreza a interacção com a população e como nunca contribuiu para a cultura popular do Porto, tema tomado sempre como caro e inadequado, ou nunca apelou para as raízes etnográficas da cidade ou da sua memória (basta lembrar a ausência de comemorações em torno dos 150 anos da morte de Garrett, entre tantas outras falhas).
E aplaudo a iniciativa porque antigamente o Carnaval era uma grandiosa festa no Porto, descrita por Arnaldo Gama, em "O Génio do Mal", de 1857, como “três dias de verdadeiro delírio – mas do delírio do prazer e da alegria, e não do delírio do regatão e do gallego. Nesses dias o cidadão do Porto, de todas as classes, diz «viva a alegria!»”.
Em meados do século XIX, para além das autênticas batalhas nas ruas em que as laranjas, os ovos, a água e a farinha eram as armas de fogo (Carnaval que, ainda assim, Alberto Pimentel em "O Porto na Berlinda", de 1893, apontava ser “muito mais civilisado que o de Lisboa”, onde aparentemente a população atirava tremoços à cara de quem passava), à noite a cidade engalanava-se para os glamorosos bailes que se faziam em diversos salões privativos por toda a cidade (como na Therpsichore ou na Euterpe, espécie de antepassado do Ateneu Comercial), com particular destaque para os do antigo Palácio de Cristal, tidos como deslumbrantes e inesquecíveis, mesmo para quem conhecia os grandes salões europeus.
Mas a verdadeira animação passava-se fora dos grandes salões. Era nas ruas, entre ricos e pobres, que a festa se fazia, com particular destaque para as multidões que se aglomeravam na Rua de 31 de Janeiro, onde as janelas se enchiam de senhoras e meninas em busca de galanteios, e na Praça Nova (mais tarde, de D. Pedro e da Liberdade), observando, rindo e aplaudindo os mascarados que dominantemente optavam pelo disfarce de galegos, ingleses, árabes, reis, príncipes e macacos, mas sobretudo de campónios, que com a sua vara de medir o estrume desencantavam umas graçolas de gosto duvidoso (mas que, na altura, faziam furor!).
E era também pelas ruas da cidade que se passeavam os desfiles (que ocorriam com assiduidade, ainda que nem sempre anualmente) de outros tempos, sempre pensados com pedagogia e um humor mais elaborado e menos brejeiro que os escassos que se fazem na actualidade. Esses desfiles de iniciativa privada (normalmente liderados pelos irmãos Luso, vindos de uma família ligada ao ensino) eram anunciados com pompa pela imprensa, e faziam afluir à cidade centenas e centenas de pessoas vindas de todo o Norte do país e até de Lisboa, inflacionando o preço das melhores janelas para ver o cortejo e enchendo as hospedarias e estalagens da cidade como em nenhuma outra altura do ano.
Um dos que maior brado causou (e que terá tido uma assistência de cerca de 60 mil pessoas, segundo a imprensa da época), decorreu na tarde de Domingo gordo de 22 de Fevereiro de 1857 e pretendia representar o regresso de D. Sebastião, vindo finalmente do seu longuíssimo exílio. O cortejo começou na extinta Praia de Miragaia (que estaria onde hoje se ergue o edifício da Alfândega), com o desembarque do rei e, depois de várias voltas pelas ruas da cidade, terminou na Praça da Batalha, espaço privilegiado da boémia e animação do Porto de Oitocentos, sem que se tivesse registado “nenhuma rixa, nenhuma briga nem desordem (…). À noute foi D. Sebastião ao theatro de S. João com o seu cortejo assistir ao baile de máscaras”, como testemunhou o jornal "Periódico dos Pobres", no dia seguinte.
A tradição carnavalesca manteve-se firme no Porto ao longo dos anos e, já no início do século XX, ficaram famosas as disputas entre clubes ou associações recreativas pelo melhor desfile. A fotografia de Domingos Alvão, acima reproduzida, evoca precisamente um desses momentos, no caso o Carnaval de 1906 em que o Clube Fenianos e o Clube Girondinos organizavam os seus próprios cortejos com o intuito de superar o adversário. Na imagem acima, um dos dois cortejos (sem certeza absoluta, julgo ser o do Clube Fenianos) desfila animado, sob uma vasta chuva de serpentinas e perante a alegria da população que se aglomera nos passeios e nas janelas, pela Rua de Santa Catarina, na intersecção com a Rua de Passos Manuel. O edifício baixo da esquina será mais tarde substituído pelo conhecido edifício Palladium de Marques da Silva, actualmente ocupado pela Fnac e pela C&A.
Ainda que pela primeira vez venha a terreiro aplaudir uma iniciativa camarária vinda desta edilidade, não posso deixar de apelar ao senhor presidente para que desta vez permita que os participantes critiquem publicamente o município, aliás, como era costume no Porto de há 150 anos atrás. No Carnaval de 1859, por exemplo, a temática era “As Sete Maravilhas do Porto”, em que a sexta era tão só intitulada de “Obras Municipais”. O painel incluía uma vara de porcos focinhando nas ruas do Porto e a legenda dizia: “Ensaiar-se-ha brevemente este systema mais fácil de enfossar em todas as ruas ao mesmo tempo”.
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Mais uma resposta ao repto que aqui lancei para descreverem o vosso golo de sonho vestidos de azul e branco, a juntar ao João Saraiva, ao Aníbal Letra, ao André Moura e Cunha, ao Ricardo Castro Ferreira, ao Michael Knight e ao Guarda Abel:
- A do Ricardo, do Apatia Geral. Mais um emocionante e tecnicamente perfeito golo perante os vermelhos, mesmo antes do apito final. Obrigado, Ricardo!
Dos convites que fiz à participação, tenho também a confirmação de textos para breve, que aguardo ansiosamente: do Bruno Sena Martins, do Fitzx, do Manuel Jorge Marmelo, do Paulo Costa e do Pedro Olavo Simões.
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A ver/ler/responder:
1 - Esta belíssima fotografia no Não Sei Pra Mais, do nosso Estádio do Dragão.
2 - Esta excelente reportagem intitulada "O Douro é um milagre", no Coriscos.
3 - Este texto que aborda um tema que por aqui é recorrente - a Banda Desenhada - no Corta-Fitas.
4 - Este divertido inquérito no Pobo do Norte.
Etiquetas: Porto
10 Carruagens:
Esta historia da diferenca horaria nao e' justa comigo. Deixa-me antever que o blog ira' ter um novo post mas depois fico cheia de curiosidade para ler o texto e...
...nada! Tenho de esperar ate' acordar ;-)
Entao sera' que algum amigo te vai pregar uma partida de Carnaval? :-)
Na minha opiniao os passageiros do comboio azul deveriam ter direito a uma fotografia carnavalesca do duo MICARDO...
Também do Arnaldo Gama, «Um Motim Há Cem Anos» tem uma hilariante descrição do Carnaval portuense no séc. XVIII.
Magnífica esta recordação. Não fazia ideia de um Carnaval assim no Porto. Outros tempos mesmo. Mas é de louvar o carnaval programado que por estes dias trouxe mais côr aos Aliados. Um bom sinal, na minha opinião. ;)
Sendo este Carnaval de 1906 ém provável que já tenha sido organizado pelo Clube Fenianos Portuenses. Este Clube foi fundado em 1904 exactamente para recuperar os festejos do Entrudo no Porto. (Ver "Porto Cidade Com Alma, de J. Tamagnini Barbosa e Manuel Dias, edição de J. Tamagnini Barbosa, saída no final de 2006)
meu caro, sempre ouvi dizer que era "grande" o Carnaval do Porto, dos Clube Fenianos Portuenses...e devia ser mesmo!
nota: apesar da "imaginação" não estar na melhor das formas, já respondi ao desafio...
Anónimo,
quem és tu?
MCP,
Também essa obra do Arnaldo Gama serviu de inspiração, particularmente para os disfarces preferidos. Obrigado!
José Eduardo,
Obrigado pelas palavras. Semnpre Bem-vindo neste comboio!
Francisco Oliveira,
Espero que o texto tenha acrescentado alguma coisa ao que comentou. Há imensa documentação sobre os fenianos! Toca a explorar!
Abraço!
Ricardo,
Já acrescentei link para a participação! Obrigado!
Quem e' que o anonimo haveria de ser? A trenga da tua amiga que se enganou na opcao... Foi uma partida de Carnaval...
Eu sempre gostei desta epoca e era sempre com grande entusiasmo que me mascarava e pregava partidas. Por estas bandas nao ligam a essas coisas...Buuuu Nem serpentinas ha'!!!
Afinal vamos ter foto do duo ou nao? ;-)
Sugestao: que tal um dia nos contares a historia dos Fenianos?
Mais uma excelente lição de História.
Kate, este ano não houve carnaval por minha causa: estava doente por isso a única coisa que fizemos foi experimentar uns dentes de drácula que nos deram no Continente - e acredita que era demasiado deprimente para tirar fotografias...
Mica, estas perdoada ;-)
Beijinho
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