Comer no Porto
"Lisboa come com pretensões francesas e fantasistas: logo o Porto se afoga, cada vez mais, no chorume da velha cozinha portuguesa, e abraça-se, como a um estandarte, à travessa do cozido"
Eça de Queirós (1872) Uma Campanha Alegre.
Os pontos nos ii. Assim me foi apresentado o post Grandezas & Misérias da Invicta, da Joana Bernardes do A Cozinha da Joana, pelo Eduardo Pitta do Da Literatura.
Parti curioso, até porque o objectivo do post era provar que a "lenda enraizada (...) que a Norte se come sempre bem" era uma mentira.
Nunca fui um grande entendido em gastronomia, ainda que saiba que há quem considere as minhas sugestões. Sou mais atento que sabedor, mais coleccionador que perito, mas ainda assim julgo saber distinguir entre uma boa refeição num lugar apropriado de uma mixórdia num buraco.
A Joana (que não faço ideia quem seja) incorreu, malogradamente, em variados erros de análise.
O primeiro, facilmente perceptível nas primeiras linhas, foi um problema de escala. Confundiu o Norte com o Porto, num primeiro momento, e seguidamente, quatro moradas selectas (como a própria apontou) com as centenas de restaurantes da Invicta. Erros clássicos de quem vem da capital, infelizmente.
Outro tique clássico do provincianismo lisboeta (que ninguém se ofenda com a provocação! Afinal não foi a Sophia de Mello Breyner Andresen que escreveu: “Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Mas escapei ao provincianismo da capital”?) é a eterna necessidade da presença francófona como aval de qualidade (já agora, espreitem este texto do Pacheco Pereira, onde essa questão passa por lá). No Porto, a boa comida não rima com francês e de há muito que os portuenses sabem que é longe dos grandes requintes que se encontra o melhor petisco. Aliás, a este propósito já Alberto Pimentel, no final de XIX, escrevia que: "a burguezia do Porto, se queria perpetrar uma comezana por extravagancia, não ia aos hoteis, mas às tascas".
Se a Joana Bernardes julga que o Porto Novo (restaurante do hotel Sheraton), o Kool (na Casa da Música), o Bull & Bear e o Oporto são a melhor amostra para aquilatar a veracidade da sua demanda inicial, então não faz a mínima ideia do que é o Porto, de qual é a sua forma de ser e, acima de tudo, do que é comer bem na Invicta.
Esta escolha da Joana é desde logo geograficamente marginalizadora. Os quatro locais que visitou são todos a Ocidente da Rotunda da Boavista que, por sua vez, fica a Ocidente do centro administrativo e simbólico do Porto. Quero com isto dizer que a Joana Bernardes quis reduzir a velha lenda do comer bem a Norte a uma amostra de quatro restaurantes que se situam em enorme proximidade geográfica, precisamente na área onde pior se come na cidade do Porto. Esse é o espaço dos restaurantes caros, pedantes, onde tudo se assemelha a uma enorme feira de vaidades, aliás em tudo semelhante à imagem clássica dos restaurantes lisboetas que ajudaram a dar boa fama ao Norte.
Porque, de facto, o Porto quando se travestiza de Lisboa é infinitamente pior que a capital. Não me surpreende portanto que tenha sido precisamente no Oporto, dos quatro o mais genuíno porque menos afrancesado e mais inglês, na velha tradição anglófona do Ocidente portuense, que a Joana terá tido a sua melhor refeição e um "serviço extremamente atencioso", como aliás sublinha. Ainda assim, o Oporto será apenas representativo de um certo Porto: britânico, de classe alta e pretensioso, de quem Ruben A escreveu um dia: "Dá-me impressão de que nunca os ingleses do Porto provaram o bacalhau à Biscainha ou as tripas do Bonjardim". Nos restantes restaurantes selectos, a Joana encontrou um chef (sem e no fim), um tal de Gemelli (que, pelos vistos, até é de Lisboa), couvert (e não entradas), foie gras ou tarte tatin.
Se a Joana quiser saber como vai a restauração no Porto, procure conhecer o Porto genuíno, aquele que fica a Oriente da Rotunda da Boavista, onde o sautée ou o flamboyant são substituídos pela cabeça de pescada, pelo arroz de polvo e pelas tripas.
Já agora, aproveite e convide o Eduardo Pitta, que presumo seja seu conhecido, e peça-lhe para convidar também o seu amigo e conhecedor Francisco José Viegas a introduzi-la na excelente cozinha da Casa Nanda (onde a cozinheira é sobrinha da mítica Mamuda), do Paparico (onde o polvo de entrada é sublime) ou da Cozinha do Manel (em que a vitela é um pedaço de céu).
Isto, se o que deseja é comer bem e não uma cara (não pagará jamais os 55 euros por cabeça que desembolsou) feira de vaidades com sotaque francês.
E, então aí, colocará os pontos nos ii.
Eça de Queirós (1872) Uma Campanha Alegre.
Os pontos nos ii. Assim me foi apresentado o post Grandezas & Misérias da Invicta, da Joana Bernardes do A Cozinha da Joana, pelo Eduardo Pitta do Da Literatura.
Parti curioso, até porque o objectivo do post era provar que a "lenda enraizada (...) que a Norte se come sempre bem" era uma mentira.
Nunca fui um grande entendido em gastronomia, ainda que saiba que há quem considere as minhas sugestões. Sou mais atento que sabedor, mais coleccionador que perito, mas ainda assim julgo saber distinguir entre uma boa refeição num lugar apropriado de uma mixórdia num buraco.
A Joana (que não faço ideia quem seja) incorreu, malogradamente, em variados erros de análise.
O primeiro, facilmente perceptível nas primeiras linhas, foi um problema de escala. Confundiu o Norte com o Porto, num primeiro momento, e seguidamente, quatro moradas selectas (como a própria apontou) com as centenas de restaurantes da Invicta. Erros clássicos de quem vem da capital, infelizmente.
Outro tique clássico do provincianismo lisboeta (que ninguém se ofenda com a provocação! Afinal não foi a Sophia de Mello Breyner Andresen que escreveu: “Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Mas escapei ao provincianismo da capital”?) é a eterna necessidade da presença francófona como aval de qualidade (já agora, espreitem este texto do Pacheco Pereira, onde essa questão passa por lá). No Porto, a boa comida não rima com francês e de há muito que os portuenses sabem que é longe dos grandes requintes que se encontra o melhor petisco. Aliás, a este propósito já Alberto Pimentel, no final de XIX, escrevia que: "a burguezia do Porto, se queria perpetrar uma comezana por extravagancia, não ia aos hoteis, mas às tascas".
Se a Joana Bernardes julga que o Porto Novo (restaurante do hotel Sheraton), o Kool (na Casa da Música), o Bull & Bear e o Oporto são a melhor amostra para aquilatar a veracidade da sua demanda inicial, então não faz a mínima ideia do que é o Porto, de qual é a sua forma de ser e, acima de tudo, do que é comer bem na Invicta.
Esta escolha da Joana é desde logo geograficamente marginalizadora. Os quatro locais que visitou são todos a Ocidente da Rotunda da Boavista que, por sua vez, fica a Ocidente do centro administrativo e simbólico do Porto. Quero com isto dizer que a Joana Bernardes quis reduzir a velha lenda do comer bem a Norte a uma amostra de quatro restaurantes que se situam em enorme proximidade geográfica, precisamente na área onde pior se come na cidade do Porto. Esse é o espaço dos restaurantes caros, pedantes, onde tudo se assemelha a uma enorme feira de vaidades, aliás em tudo semelhante à imagem clássica dos restaurantes lisboetas que ajudaram a dar boa fama ao Norte.
Porque, de facto, o Porto quando se travestiza de Lisboa é infinitamente pior que a capital. Não me surpreende portanto que tenha sido precisamente no Oporto, dos quatro o mais genuíno porque menos afrancesado e mais inglês, na velha tradição anglófona do Ocidente portuense, que a Joana terá tido a sua melhor refeição e um "serviço extremamente atencioso", como aliás sublinha. Ainda assim, o Oporto será apenas representativo de um certo Porto: britânico, de classe alta e pretensioso, de quem Ruben A escreveu um dia: "Dá-me impressão de que nunca os ingleses do Porto provaram o bacalhau à Biscainha ou as tripas do Bonjardim". Nos restantes restaurantes selectos, a Joana encontrou um chef (sem e no fim), um tal de Gemelli (que, pelos vistos, até é de Lisboa), couvert (e não entradas), foie gras ou tarte tatin.
Se a Joana quiser saber como vai a restauração no Porto, procure conhecer o Porto genuíno, aquele que fica a Oriente da Rotunda da Boavista, onde o sautée ou o flamboyant são substituídos pela cabeça de pescada, pelo arroz de polvo e pelas tripas.
Já agora, aproveite e convide o Eduardo Pitta, que presumo seja seu conhecido, e peça-lhe para convidar também o seu amigo e conhecedor Francisco José Viegas a introduzi-la na excelente cozinha da Casa Nanda (onde a cozinheira é sobrinha da mítica Mamuda), do Paparico (onde o polvo de entrada é sublime) ou da Cozinha do Manel (em que a vitela é um pedaço de céu).
Isto, se o que deseja é comer bem e não uma cara (não pagará jamais os 55 euros por cabeça que desembolsou) feira de vaidades com sotaque francês.
E, então aí, colocará os pontos nos ii.
Etiquetas: Porto
6 Carruagens:
Um belo post, sim senhor. Já passei as sugestões à Joana. Se me permite, dois reparos. Um: a minha amiga Joana não confunde o Porto com o Norte, apenas o tomou por paradigma. Dois: forçada por compromissos sociais (sócio-profissionais, para ser mais exacto) a fazer aquelas refeições em fim-de-semana de temporal, pouco propício a grandes passeios, escolheu o que tinha mais à mão. Mas ela sabe que o eixo Boavista-Foz-Matosinhos não esgota o Porto. Até porque é fã da Casa Aleixo (a Campanhã). Como vê... Em todo o caso, julgo que a intenção dela foi comentar o estado do Porto gourmet, o qual, bem ou mal, passa por restaurantes como aqueles sobre os quais escreveu. A sua (dela) intenção foi chamar a atenção para o bluff que representa um restaurante que todos os anos recebe prémios (o Bull & Bear), outro que se apresenta como a actual coqueluche (o Kool) e, por contraponto, dois francamente bons.
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Mas que excelente Post!
Já nos tentaram, e algumas vezes conseguiram, tirar tantas coisas... mas não conseguirão mexer na nossa mesa! Pode não ser a melhor de Portugal porque as opiniões são discutíveis e felizmente a cozinha tradicional deste país é de uma riqueza e bom gosto extraordinário... mas temos excelentes restaurantes, tascas e petiscarias que mesmo nós que cá vivemos, vamos descobrindo e redescobrindo com o passar dos anos.
Belo texto caro amigo JRP.
Só quando Portugal deixar de ter um certo pensamento, quinto-mundista no que diz respeito às tradições de Portugal, Lisboa, Porto, Freixo de espada etc etc, (...gourmet!?!) é que vamos valorizar este pequeno Portugal e a sua enorme riqueza cultural, gastronómica artística etc.
Já agora Gourmet não é comida de gato?É que eu tenho memória de peixe.
A cabeça de pescada e o arroz de polvo podem ficar. Mas as tripas são o auto-golo que beneficia o adversário.
Este post abriu-me o apetite, por isso vou ali ao Pombeiro "abiar" uma postazinha "à Baião"...
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