sexta-feira, novembro 24, 2006

O rochedo

O penedo de Gibraltar como nós o vimos, numa noite quente do Verão de 2005.

"Os três níveis cósmicos - Terra, Céu, regiões inferiores - tornaram-se comunicantes. (...) A comunicação é por vezes expressa por meio da imagem de uma coluna universal Axis mundi que liga e ao mesmo tempo sustenta o Céu e a Terra, e cuja base se encontra cravada no mundo de baixo (o que se chama «Infernos»). (...) A montanha sagrada é um Axis mundi que liga a Terra ao Céu e ela toca de algum modo o Céu e marca, por consequência, o ponto mais alto do mundo."
Eliade, Mircea (1956) O Sagrado e o Profano.

Proa de navio que irrompe pelo mar, o maciço calcário ergue-se majestoso à minha frente. Ao som das ralas e dos grilos que sussurram a melodia da noite, deito-me no chão e capto, no calor daquele Verão, o misterioso Monte de Tarik (líder árabe da invasão muçulmana da Península, no século VIII) e a encantadora e poderosa Lua, luz de alerta de um deus ensonado. No romantismo de um luar impetuoso, o Mediterrâneo e o Atlântico trocam olhares apaixonados e cruzam as suas águas naquele lugar, entre um beijo salgado nas rochas.
Criado pelo inexorável vigor da tectónica das placas ou pela força interminável do semideus Hércules nos seus doze trabalhos, Calpe (o outro nome do rochedo) vigia sereno o estreito de Gibraltar onde, em tempos, o ocidente terminava e a porta do purgatório se abria, tanto para Ulisses como para o mundo. No sopé, junto ao caminho de passagem de navios e gentes, a luz ciclópica de um farol ecoa nas trevas como uma nota musical aguda no silêncio grave de uma despedida.
Imponente e tranquilo, o rochedo assemelha-se à escada de Jacob, trilho percorrido pelos anjos, entre o mundo dos mortais e a morada de Deus. Lá em cima, junto ao último degrau, aquele que o criou ainda se rejubila pela perfeição da sua obra e decide que um dia, quando regressar, será por ali que descerá. Ali, no umbigo do mundo.

A ler, por aí:
Lutas que valem a pena, no
Bichanos do Porto e no Agir pelos animais.
Verdadeiras pérolas, como o site enciclopédico de
José Adelino Maltez; a extraordinária viagem ao passado do Gabriel Silva (do Blasfémias) no Diário da minha viagem para Filadélfia; ou a exposição de fotografias de outros tempos no Antigamente..., do Marco Oliveira (via Dolo Eventual)
Tiros na mouche em dois dos meus pequenos ódios de estimação: Manuel Alegre no
Arrastão, do Daniel Oliveira, e Figo no Avatares de um Desejo, do Bruno Sena Martins.
E, finalmente, uma sugestão: uma palestra no próximo sábado pelos autores do
Dias Com Árvores.

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1 Carruagens:

Blogger PCS said...

Não sei porquê mas concordo que o livro de Mircea Eliade, explica muita coisa.

quarta-feira, novembro 29, 2006 9:51:00 da manhã  

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