quarta-feira, janeiro 31, 2007

Grandes Vinhetas # 8

Retirado de "Os ladrões de Marsupilami" (1954) Franquin.

Three Lions - Lightning Seeds

"Tout ce que je sais de plus sûr à propos de la moralité et des obligations des hommes, c'est au football que je le dois."
Albert Camus

Nunca fui rapaz de drogas nem de álcool, o que me deixa entre os poucos da minha geração que nunca se sentiu embriagado nem "passado". Não é por isso de estranhar que uma grande parte dos momentos de verdadeira euforia que vivi na minha vida tenham sido no futebol.
Tenho a sorte de, desde muito pequeno, sentir intensamente o meu clube, que por acaso é aquele que, por uma larga margem, maior número de vitórias e de troféus venceu durante as pouco mais de três décadas que tenho de existência. Recordo-me do estado de entusiasmo desenfreado que a vitória de Sevilha (vivida no calor insuportável do estádio olímpico da capital da Andaluzia) ou a vitória de Gelsenkirchen (numa aventura a solo que terminou a dois) me deixaram, para além de muitos outros momentos, talvez menos importantes para a história do clube, mas muito importantes para mim e para os restantes adeptos do Porto porque significaram vitórias sobre as equipas da capital, numa provável reminiscência tribal.
É claro que há muito de irracional no meio daquilo tudo. Basta lembrar o exemplo dado por Jerry Seinfeld no célebre episódio "The Label Maker" quando Jerry se interroga sobre o que verdadeiramente apaixona os adeptos: "Loyalty to any one sports team is pretty hard to justify. Because the players are always changing, the team can move to another city, you're actually rooting for the clothes when you get right down to it. You know what I mean, you are standing and cheering and yelling for your clothes to beat the clothes from another city. Fans will be so in love with a player but if he goes to another team, they boo him. This is the same human being in a different shirt, they *hate* him now."
De facto, retirando significado ao vestuário desportivo (imbuídos nas cores e nos emblemas, por exemplo), tudo aquilo parece de loucos. Aliás, se nos lembrarmos da revolta de Nika, que opôs, no longínquo ano de 532, os adeptos da equipa azul e da equipa verde, que se defrontavam em corridas de carros puxados por cavalos no hipódromo de Constantinopla, e que colocou a cidade a ferro e fogo durante uma semana, perceberemos que tudo isto está muito mais no nosso sangue do que imaginamos.
A verdade é que o futebol não é só rivalidade, mas também união, alegria e emoção. Aliás, a própria revolta de Nika acabou com as duas facções unidas contra o poder. E não foi Woody Allen que um dia disse que, entre a arte e o desporto, escolheria sempre o desporto porque o fim era sempre uma incógnita?
A qualidade de um jogador, independentemente de tudo o que o possa rodear, pode apaixonar de tal forma o público que a sua camisola pouco importará (no meu caso, recordo-me por exemplo de Timofte, mesmo quando passou para o Boavista!). De certa maneira, é precisamente isso que acontece na fantástica sequência de vinhetas (de que a tira acima reproduzida é apenas uma pequena parte), onde Spirou e Fantásio, através do traço mágico de Franquin, descobrem o talento futebolístico daquele que havia roubado o corpo (aparentemente morto!) de Marsupilami, o estranho animal de longa cauda que os dois heróis haviam descoberto no álbum anterior, "Os Herdeiros".
O mais apaixonante dessa sequência, toda ela desenhada com um engenho extraordinário, é que, não só Spirou e Fantásio, mas também o próprio leitor, acabam por se afeiçoar a Valentim Mollet (o jogador/ladrão) através das suas fintas e dos seus memoráveis golos, percebendo-se imediatamente que alguém com tamanho talento , apesar de ser o responsável por semelhante malfeitoria, não poderia ter em si toda a maldade. Aliás, como o resto do álbum comprovará.
É por esta e por outras que não aceito que sempre que se fala de Maradona na televisão, o tema seja a sua queda no mundo da droga ou o estado deplorável em que ele se tem encontrado. O que devia ser emitido com alguma assiduidade (bendito Youtube!) eram as jogadas fantásticas que o argentino realizou no Boca Juniors, no Barcelona, no Nápoles ou na selecção do seu país.
Qualquer um facilmente snifará uma linha de coca.
Alguém dificilmente marcará de novo um golo semelhante a este.
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Notas:
1 - Já devem ter reparado que os posts anteriores deixaram de ter a canção disponível. Problemas com alojamento... de qualquer forma, a partir de Domingo estarão novamente disponíveis.
2 - Três posts de fãs de BD:
Este do Pedro Correia, no Corta-Fitas; este outro do Francisco Curate, no nosso velho conhecido Daedalus; e ainda este do André Abrantes Amaral, no Observador.

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sábado, janeiro 27, 2007

Orgulho suburbano
(Music and passion were always the fashion)

A baía levante de Benidorm, vista pelo meu pai, do hotel Copacabana, Setembro de 1982.

Copacabana - Barry Manilow

Ultimamente, sempre que percorro as estações pré definidas do meu auto rádio à procura de música, acabo por me deixar ficar na que emitir uma sonoridade revivalista. Alguns diriam, iludindo-se, que a música de hoje não presta. Julgo que é nestas alturas que nos apercebemos que já não somos da geração reinante no que diz respeito a inovação, e que o tempo que vai passando sobre nós formatou e bloqueou a nossa capacidade de rasgar novas fronteiras.
Tem sido assim comigo, incontornavelmente. Quando não uso o mp3 ou uma velhinha cassete, sempre que deslizo pelas frequências, acabo por me ficar pelos 89.5 da Rádio Clube Português, que, não viajando apenas pelas décadas de 70 e 80, acaba por satisfazer parcialmente alguns (poucos, é certo!) dos meus anseios musicais.
Num destes dias, acabei por ouvir deliciado a esta Copacabana (que espero estejam também a ouvir), cantada por um canastrão de primeira - Barry Manilow - ídolo do final de 70.
A canção fala-nos de uma tal de Lola, ex-dançarina de uma boîte (Copacabana) em Havana, que havia perdido o seu amor, Tony (empregado do bar), numa rixa com Ricco (cliente) por sua causa, há 30 anos atrás, levando-a à demência decadente, abandonada e ultrapassada. A canção termina com Lola, 3 décadas depois, ainda com as mesmas roupas (“Still in the dress she used to wear, faded feathers in her hair”) e no mesmo exacto lugar (que se havia transformado numa discoteca em plena década de 70) bebendo até cair e lamentando-se por um dia se ter apaixonado.
Se, há alguns anos atrás, alguém me dissesse que esta Copacabana faria parte de uma galeria de canções escolhidas por mim, diria que, das duas uma, ou essa pessoa havia ensandecido ou, pura e simplesmente, queria gozar comigo. Velhos preconceitos que fui aprendendo a perder, assim que a idade foi passando, felizmente para mim de forma bem mais ligeira e simpática do que havia acontecido com a pobre Lola.
Esta canção, para além de um misto de James Bond com Bossa Nova, é também a definição perfeita de muitas férias que passei na minha infância. Não tanto no poema (Ok... chamar poema à letra deste Copacabana é capaz de ser forte, uma vez que parece um texto do Carlos Castro) mas mais no ambiente de cabaré e discoteca contínuo, para além de ter sido a banda sonora de muitas noites passadas na quente Benidorm da primeira metade da década de 80.
Para quem desconhece o fenómeno, a noite de Benidorm era, há 25 anos atrás, uma discoteca a céu aberto, com os bares de portas abertas e música nas alturas, cheia de pubs com cantores travestis e cabarés de fácil entrada. Mesmo para mim, a viver a minha meninice, tudo aquilo não passava despercebido nos passeios nocturnos junto à praia, num prolongamento da imensa excitação das manhãs e tardes passadas nas areias do Levante, onde francesas (na verdade, eram de todas as nacionalidades, mas, não sei porquê, retenho as francesas) se passeavam, numa imensa maioria, em topless. Não admira portanto que, tal como Woody Allen em Annie Hall, eu também não tenha tido um período de latência...
Mas as férias de Verão em Benidorm não eram só uma espécie de revista erótica gratuita, ou porta de entrada na Europa de quem vinha de um país ainda cinzento e perdido pós-revolução. Eram também os mergulhos na água quente mediterrânica, a inclinada ilha dos pavões (como nós lhe chamávamos), as piscinas e a paella na varanda, a vista do miradouro do castelo para a praia, os princípios de tarde sonolentos no Hotel Copacabana (ou em qualquer outro), os vigésimos andares e a vista infinita sobre o mar mediterrâneo. É curioso perceber que, o amor que hoje tenho pelo meu Atlântico, devo-o ao Mediterrâneo longínquo da minha infância, pelo qual chorava quando de lá partíamos no velho Citroën do meu pai, no último dia de férias.
A partir de meados de 80 escolhemos outros destinos (ou melhor, escolheram os meus pais). Passamos a viajar para Norte, fazendo o chamado turismo cultural pelas cidades europeias, de onde curiosamente devo muito do meu desempenho profissional actual. Benidorm vulgarizou-se enquanto destino para os portugueses, transformando-se então no lugar habitual de férias do típico suburbano portuense (do qual faço orgulhosamente parte), num processo que já havia começado, ainda que lentamente, na primeira metade de 80 (e que haveria de decorar nos principios de 90 as traseiras de tantos e tantos automóveis com a silhueta da Penelope, um popular disco/bar na marginal de Benidorm).
A partir de certa altura, todos os amigos que me rodeavam, os que lá tinham ido ou os que só haviam ouvido falar, passaram a tratar Benidorm como o último dos lugares a visitar, porque cheio de portugueses e como exemplo de caos urbanístico e ambiental, assemelhando a baía da minha infância, ao recanto mais assustador de Fânzeres.
Passados pouco mais de vinte anos da minha última visita, tenho sobre Benidorm a mesma ilusão que Lola tinha sobre o seu passado, ainda de plumas na cabeça e vestido decotado. A encantadora baía de Benidorm onde aprendi a amar o mar.
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Sou fã:
- Da série
Arrumar a gaveta", no Linear P.
- Dos cartoons de
José Bandeira, como este do post Coisas do Baú.
- Da série
Tertúlia Literária, no Corta-fitas.
-
Deste post de T. Galvão, no Diário. RIP PAF (não resisti...).

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quinta-feira, janeiro 25, 2007

Auto-retrato
(wishful thinking)

A urbanização Antigone, de Ricardo Bofill, em Montpellier, como eu a vi, em Agosto de 2003.

Lost in the plot - The Dears

Take me for a drive to the coastline
Pull me to the depths of the sea
Leave me in the middle of the ocean
I can walk the rest of the way

And I promise not to cry anymore
All the reasons beat the crap out of me

Everyday when I wake up they are waiting
But I promise not to cry anymore
'Cos it's the same old plot these things
Oh it's the same old plot these things
Oh it's the same old plot these things
Oh it's the same old...

Our love, don't mess with our love
Our love is so much stronger
Our love, don't mess with our love
Our love is so much stronger

Oh it's the same old plot these things
Oh it's the same old plot these things
Oh it's the same old plot
Same old plot
Same old plot these things

Oh I promise not to cry
Oh I promise not to cry
Oh I promise not to cry
Anymore
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Dar os parabéns:
- À malta do
Dias com árvores. Eles bem merecem! Já agora... quem tem a 1.ª edição não tem direito ao novo capítulo de forma gratuita? Nós merecemos!
- Ao Francisco Oliveira pelas cada vez melhores fotografias no
Porto Norte.
A ler/ver:
- A piada aos dinamarqueses pelo
Francisco José Viegas.
-
Esta sugestão do Pacheco Pereira.
- Duas peças futebolísticas:
esta notícia no Maisfutebol, e este trabalho de investigação do Portistas de Bancada.

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terça-feira, janeiro 23, 2007

Lei da permanência

A praça da Batalha, no Porto, ao vigésimo terceiro dia de Dezembro de 2006.

Mute Witness - Morrissey

"(...) a Piazza Navona é uma configuração da lei da «permanência» dos traçados urbanos. (...) Esta praça, nascida de um traçado ordenado e utilizado para outros fins que não os primitivos, levanta outro tipo de problema ao urbanista: porque razão este sítio manteve uma animação popular constante durante 2000 anos? (...) Ainda hoje, à medida que os habitantes das cidades cada vez menos utilizam o espaço público, a Piazza Navona continua a ser frequentada, seja qual for a hora, o dia ou a estação. Magia do local, talvez?"
Charles Delfante (1997) A grande história da cidade.

A encantadora Lua coloca-se novamente alinhada pela porta principal da setecentista igreja de Santo Ildefonso, na Praça da Batalha no Porto, como o faz desde que esta era apenas uma pequena ermida no cimo de um outeiro, junto a um cemitério. A igreja, anfitriã como poucas graças à longevidade de tal nobre demanda, abre-lhe gentilmente os portões em ferro do seu adro, como uma mãe abre os braços a um filho que não vê há muito tempo.
Tempo. Tudo se resume à velocidade do tempo. Lá do alto, a Lua, espectadora deliciada e silenciosa, assistiu às voltas que a praça foi dando ao longo do tempo, desde provável cemitério suburbano da cidade romana de Cale, a velha e movimentada entrada oriental na medieval cidade do Porto (pela desaparecida Porta de Cima de Vila que ficava, no mesmo enfiamento, à entrada da Rua de Cimo de Vila e junto ao actual Hotel Mercure), à boémia e divertida praça oitocentista, dos cafés Águia D'ouro e do Teatro São João, nas patuscadas camilianas ou no diletantismo de Júlio Dinis.
No fundo, a Batalha é um pouco como a romana Piazza Navona, que, no século I, foi palco de simulações de batalhas navais, no estádio Domiciano (de onde herdou a forma que lhe dá o nome - navio), foi, na idade média, lugar de feiras, festas e torneios, e, mais tarde, praça barroca de Borromini e Bernini, que a transformaram no cenário idílico de animação e convívio que perdura até aos dias de hoje.
A perenidade morfológica dos dois espaços, conferida mais por geometria e economia de fundação do que por energia mística do lugar, mistura-se com a continuidade funcional. No caso da portuense praça da Batalha é a hotelaria, desde a grande e boa estalagem de Cimo de Vila do século XIV (que ficava mesmo juntinho à forca), passando pelos diversificados e procuradíssimos hotéis de XIX (como o Universal ou o Estanislau, entre tantos outros), até aos actuais Mercure e Quality Inn, filhos da globalização sem fim. A fatalidade hoteleira deve-se provavelmente ao facto de a praça ter funcionado eternamente como hall de entrada na cidade, quer como rossio no exterior de uma das portas mais importantes da cidade medieval (onde se sucediam as feiras e as filas para entrar na cidade), quer como lugar de partida e chegada de diligências e carros americanos (vindos dos aglomerados próximos ou da estação de Campanhã a partir de 1875), quer ainda como destino final das estradas vindas de Penafiel (Rua de Santo Ildefonso) ou de Guimarães (Rua de Santa Catarina).
Na Batalha, ao contrário da Navona, a forma em boomerangue ou em L da praça tripeira (consequência do adro de Santo Ildefonso e das suas feiras, numa extremidade, e da velha estrada para Valongo por Entreparedes, na outra) não gerou o seu topónimo, que parece ser herdado de uma batalha do século X, entre Cristãos e Sarracenos.
Sorrindo a quem sai da igreja de Santo Ildefonso, a imortal e luzidia testemunha silenciosa (por falar em Mute Witness, a música é sensacional, não é?) rebaixa quem pode apenas imaginar aquilo que foi a praça no seu passado, e não acompanhou, noite atrás de noite em séculos que já lá vão, os diferentes passos na modelação morfológica e funcional da mais incessante praça do Porto, como ela o fez.
Toldado pelo abandono actual da praça, na minha cabeça, como Salieri contra Mozart, conjecturo a morte fria e sangrenta da garbosa Lua, única forma de vingança contra a sua sorte imensa.

P.S. – A dada altura na canção, Morrissey pede: "Now dry your tears, my dear". Sim, o destinatário era eu. Depois deste fim-de-semana, nunca mais serei o mesmo. Afinal, a felicidade é logo ali.
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A ler:
1 -
Onde a tradição ainda é o que era, na Cidade Surpreendente.
2 - A ironia da pergunta de Gabriel do Blasfémias:
uma questão à qual convinha desde já ter uma resposta.
3 - O post
"Do mito da grandeza (ou um post que nunca mais acaba)", na Fonte das Virtudes.
4 - Esta análise ao Scoop, em O Amigo do Povo (via Corta-fitas).

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domingo, janeiro 21, 2007

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)

A ponte da Arrábida como nós a vimos a 25 de Março de 2005.

Quando sofro possuo a Natureza configuro
até à exaustão o recesso da rocha
involuntariamente em que imagino
o gorjeio. Escolho repleta de camélias
a vereda sem nenhum resíduo alheio
só o das imagens da flor de lótus
vim até à muralha. É um Museu

Romântico, no muro do musgo, no baixo-relevo
está o perfil egípcio, oiço o tenor,
o da sintonia, do regresso das expedições,
confundo o buxo das camélias com um labirinto
róseo.

Que figura de flor tem o sentido mais próximo
ou coevo?
O único hino, tanto o som o dissipa,
perde-se.
Era nítido o espaço rodeado pelo cedro,
pedra corporizada,
uma síntese no estado presente
do tempo do espírito.


Fiama Hasse Pais Brandão (1976) Camélias (Museu Romântico do Porto)

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sábado, janeiro 20, 2007

Grandes Vinhetas # 7

Retirada de "Obélix e companhia" (1976) Goscinny & Uderzo.

Hit Song - Peter Murphy

Para o meu grande amigo Tiago Duarte Silva que, desterrado em Rochester, passa hoje o seu aniversário longe de casa, da família e dos amigos. Vê lá se resolves esses estudos de Finanças depressa, para regressares rapidamente. Ofereço-te uma canção que tantas vezes ouvimos juntos há alguns anos atrás e uma vinheta apropriada de um álbum que ironiza com o capitalismo desenfreado da Roma Clássica, onde até um menir atinge um valor de mercado impensável, através da acção do tecnocrata Caius Saugrenus, caricatura de Jacques Chirac.
Um abraço do lado de cá do Atlântico.

Hit Song

Walking in the street
Breath the only friend
Strangers pass me by
I'm moving, moving with the wind
Inside me now, the gold
The gold at rainbows end
Stranger to myself, a stranger
Stranger till the end
Behind the closed door
The one we painted green
To remind me of the perfect plan

Wash my face in fields of green
Take me to the stars for free
Point me to the high wire call
Wake me true and wake me all

Walk me in the streets
Take me, to a view on high
To an empire state
Tease, tease and bake me dry
Swerve and turn on me
Melt me, melt me to the wall
Like an unspeant fortune, I'm running
Running with the call
Behind the closed door
The one we painted green
To remind me of a perfect plan


___________

A ler:
1 - A excelente
resposta de Ivan Nunes, no A Praia, ao que se tem dito de Scoop e também ao que eu aqui havia escrito.
2 - Sou leitor assíduo do
Inépcia há bastante tempo. Para quem não conhece, a visita é indispensável. Entre outras notícias sensacionais, o autor (a mítica personagem "Renato Carreira") dá-nos conta da surpreendente vitória de Vítor Paneira no Concurso "Grandes Portugueses" ou o facto de o Irão negar a extinção dos dinossauros. Um must!
3 - No incontornável Kontratempos, o texto "Ainda o concurso e Mário Soares", esta
hilariante notícia no suíço Le Matin Blue e, em particular para o meu amigo Nuno Calheiros, a memória desta entrevista a Álvaro Cunhal.

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sexta-feira, janeiro 19, 2007

Grandes Vinhetas # 6

Retirada de "O refúgio da Moreia" (1957) Franquin.

From the bench at Belvidere - The Boo Radleys

"Quando vejo um Franquin (...) digo para mim: Como podemos nos comparar? Ele é um grande artista, à beira do qual eu não passo de um mísero desenhador."
Hergé

Tenho para mim (e sei que não estou sozinho nisto) que uma das mais fabulosas cenas cinematográficas de sempre é aquela em que, no filme Blow Up (1966) de Michelangelo Antonioni, Thomas (David Hemmings) nos mostra, através da revelação de uma série de fotografias tiradas casualmente num parque, a ocorrência de um assassinato. A cena, absolutamente extraordinária, tem o seu encanto precisamente na forma como, apesar do silêncio e isolamento do protagonista, nós acompanhamos o seu raciocínio através da sua interpretação corporal e acabamos por sentir a mesma ânsia incontrolável na observação da próxima ampliação para descobrirmos o que de facto havia acontecido.
Ora, o processo no qual esta vinheta de Franquin do livro "O Refúgio da Moreia" das "Aventuras de Spirou e Fantásio" se inclui é em muito parecido com a referida cena de Blow Up, talvez nem tanto no silêncio (ainda que Spirou pouco explique), mas na forma como o autor nos encaminha para a solução através do olhar e da postura céptica de Fantásio nas deduções do velho amigo. Spirou encena o percurso e a posição do criminoso colocando-nos (a nós e a Fantásio) no lugar deste.
A vinheta, parte de um conjunto de tiras apaixonantes, reflecte precisamente o momento em que Fantásio se apercebe da posição privilegiada que, do cimo daquela árvore onde ele está empoleirado, um atirador teria para alvejar um carro a passar n' "a estrada lá ao fundo".
O que torna a imagem ainda mais cativante é a forma como Fantásio (ou o leitor) se sente escondido entre a folhagem, transmitindo uma incontrolável, apetecível, segura e confortável sensação de voyeurismo, ao mesmo tempo que permite a reconstituição do crime como no filme Blow Up, potenciada pela presença dos marcos destruídos na estrada e das marcas do despiste, causados pelo automóvel baleado.
A vegetação acaba por ter um papel absolutamente fundamental no exacerbar do secretismo do lugar e na função de moldura ou janela para a estrada, criando um ambiente de romantismo naturalista, oposto ao chamado disencumbering (ou desobstrução) neoclássico, e no seguimento da velha tradição vinda da arte urbana medieval: o objecto de contemplação é ofuscado por um conjunto de elementos que representam o contexto geográfico e permitem a sua descoberta por etapas e não de imediato.
Em mim, que sempre me senti um voyeur em potência, esta vinheta passou a servir de modelo fotográfico (como aliás se pode perceber pelo post "Em queda"), e dela me recordo tantas e tantas vezes quando uma janela indiscreta me permite a contemplação sorrateira.
_____________

A ler:
1 - Por falar em vegetação, o
Super-Bonsai, no Dias com Árvores, sobre uma árvore peculiar naquele nosso lugar.
2 -
Este excerto de entrevista a Federico Fellini, a propósito do filme Amarcord, no In Absentia.
3 - A interpretação de
resultados diferentes para a mesma pergunta no Corta-Fitas e no Portistas de Bancada, pelo Nortadas.
4 - Este paralelo no A Natureza do Mal.

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quarta-feira, janeiro 17, 2007

Sombras

Os plátanos das Fontainhas, numa destas noites frias e soturnas de Janeiro.

At Night - The Cure

" Rua de Vaugirard

a meia altura
desligo e pasmo de candura
exponho a chapa às luzes e às sombras
depois torno a partir fortificado
com um negativo irrecusável
"

Samuel Beckett (1946) Les Temps Modernes.
___________

A ver/ler:
Esta fotografia no Não sei pra mais, e esta citação no Apatia Geral.
Concordo com:
Este texto no Canhoto, e esta crítica no Coriscos.
Não concordo com:
Este texto no Cinco Dias. Como é que é possível comparar a obra Match Point de Woody Allen com estes dois outros filmes do mesmo autor: "É um bom filme em qualquer dia da semana, como são Manhattan Murder Mistery (1993) ou The Curse of the Jade Scorpion (2001), mas também não é muito mais que isso"? Os dois filmes citados, divertidos mas muito ligeiros, são de uma banalidade confrangedora (aliás, em muito parecida com o que se antevê de Scoop, que ainda não vi...) quando comparados com a ironia desconcertante e perturbadora de Match Point.

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segunda-feira, janeiro 15, 2007

Grandes Vinhetas # 5

Retirada de "A Ilha Negra" (1937) Hergé.

Run 2 - New Order

Desta vez não vou explorar as questões psicanalíticas de Hergé, nem os contornos de intriga política internacional, ainda que tanto um como outro estejam profundamente presentes na aventura. Procuro apenas encontrar a sensação de Norte exprimida através do traço de Georges Remi, no contraste com os mesmos sentimentos de distância, ausência e estoicismo que José Gomes Ferreira desvenda através das palavras de um dos seus extraordinários poemas, transcrito abaixo.
A visita de Tintin à Escócia, no álbum A Ilha Negra, de 1937 (por 2 vezes redesenhado e, por isso, 3 vezes publicado em cerca de 30 anos), transforma-se no cenário perfeito para ilustrar esse sentimento arrastado pelo vento setentrional, através dos soturnos e rudes caminhos de uma pequena aldeia de pescadores, Kiltoch. O nome da aldeia, ao que consta inspirada em Castlebay, numa recôndita ilha do Oeste Atlântico da Escócia, deve derivar da contracção das palavras Kilt, que Tintin veste impecavelmente no seu passeio rumo a Norte, e Loch, palavra comum na húmida Escócia uma vez que significa um corpo de água de alguma dimensão, como um lago ou um golfo. Isto, 4 anos após as primeiras notícias sobre Nessie, o monstro do Loch Ness, supostamente visto por um casal de estalajadeiros, em Maio de 1933, naquele mesmo país.
Como era usual em Hergé, o álbum cruza-se com uma série de questões da actualidade de então, tal como a crise política global que haveria de redundar na II Guerra Mundial (o mau da história é o germânico Müller, em tudo parecido com o escocês naturalizado alemão que trabalhou para os nazis - Georg Bell), ou as referências a filmes que se viriam a tornar de culto, como o King Kong (de 1933) ou o ambiente de espionagem do hitchcockiano 39 Degraus (de 1935).
Nesse rumo pelo norte da Grã-Bretanha ao longo das tiras de "A Ilha Negra", Hergé, profundamente apaixonado pela cultura inglesa, desvenda um país, uma cultura e um determinado ambiente de cores frias e rochas graníticas que tanta semelhança têm com uma certa paisagem da minha cidade do Porto.
Não é só a intensa coloração azul, nem a heróica infinitude marítima, mas também por um Castelo que só dispara tiros de ondas, pelo intenso aroma a maresia que se pressente, pela pureza e brutalidade das rochas firmes ou pela distinção de um iluminado farol coberto por lençóis de nuvens cinzentas carregadas de água e de ilusão. É sobretudo essa indescritível sensação de estarmos num lugar que nos pertence e ainda assim sempre longe de casa...
Gosto de acreditar que as palavras que Paul Morley utilizou para definir a genial banda de Manchester - New Order (cujo nome também parece estar associado ao Mein Kampf de Hitler, de 1924, mas muito vendido na década de 30) - servem também para nos definir, a mim e à minha cidade: "Eles vêem do Norte; do Norte de todo o lugar incluindo do próprio Norte". Pobre vaidade vã, tão ilusória como as nuvens carregadas de uma boreal cidade costeira.

Nota prévia do autor [leia-se José Gomes Ferreira]:
("O mesmo cenário do Rio Douro, anos depois, quando parti para a Noruega num navio de carga")

Nem todas as mãos no cais tinham corpo
algumas até já lá estavam há muito agarradas
ao silêncio que as gelou
- outras caídas no rio
afagavam o casco,
braços de pedras magoadas,
murmúrio de dedos,
lenços de maresia,
Cabedelo,
a Barra
com um Castelo que só dispara tiros de ondas

Mar aberto
com a terra cada vez mais distante e fluida
- enquanto o capitão norueguês
de alegria gorda
dançava com ferocidade de viquingue bêbado
o destino
de suspeitar
que me abria o destino
com o riso-navalha
do rumor das veias.

Em torno nas vagas
Ainda algumas mãos caídas no cais das águas,
invenções confusas,
seguravam o navio,
nadavam,
medusas,
tentavam retê-lo.

E uma delas
Estrangulava uma sereia
por denúncia de pesadelo.


Extra:
Posts que assino por baixo sobre o badalado concurso Grandes Portugueses, na RTP:
Este, do Rui Curado Silva, no Klepsýdra.
Este, do Tiago Barbosa Ribeiro, no Kontratempos.
Este, do Ventanias, no Nortadas.
Este, de João Gonçalves, no Portugal dos Pequeninos
.

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sexta-feira, janeiro 12, 2007

Em queda

Os plátanos das Fontainhas, o Douro e as pontes no Porto, como eu os vi, no findar de 2006.

I don't Know (where it comes from) - Ride

Vinda não se sabe de onde, uma brisa agita melancolicamente as últimas folhas dos plátanos das Fontainhas, que se preparam, na sua forma enrugada de ser, para deslizar em queda lenta para o Douro. Lá em baixo, o rio terno e azul espera-as em movimento processional para o mar, num ritmo cadenciado, magoado e triste.
A esta hora, o Sol pinta os ramos das árvores seculares em tons áureos em mate, como que antecipando o destino funesto que reserva para as folhas, enquanto estas se acotovelam em ânsia para o mergulho esperado, tal qual o idoso acamado que aguarda em solidão o último suspiro, sem qualquer seiva que o agarre à vida.
O rio vai lento, adoçado pelo aroma a vinha que traz de lá longe, onde na sua juventude rasgou a meseta ibérica e preparou o terreno para os socalcos da vida da gente. As folhas, uma atrás da outra, decoram como um véu negro a face mais pálida do rio, contando os segundos de um tempo que desagua em direcção ao mar.
Presa também por um fio, com pouco que a agarre a esta vida, a ponte da Casa Eiffel sobrevive abandonada sobre as águas do rio dourado, nas margens do esquecimento da cidade.
Paro tantas vezes por aqui, em fins de tarde como este, assistindo às cerimónias fúnebres que, ano após ano, os plátanos das Fontainhas oferecem à velha ponte em ferro, como homenagem por mais de um século de companhia, enquanto em uníssono sussurram baixinho, como os velhos que balbuciam as últimas preces numa missa, a Loa ao Porto de António Manuel Couto Viana:

Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
O corpo amuralhado de granito,
Cabelo d'água, à névoa, ao vento, exposto,
Face esculpida em grito.

Braços de ferro, arqueados, desmedidos,
Sobre o fluir dos barcos e do barro.
E um rumor antigo
Na voz das tuas ruas e mercados.

Vestes de escuro e enfeitas-te de luzes
Antes do Sol perder seu oiro pálido.
E das torres com sinos e com cruzes
Acenas ao mar largo.

Bulícios de cafés (há mais de mil)
Entornam-te nas veias graça e fogo.
E o lírico torpor dos teus jardins
Suspiros e repouso.

Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
Coração, não de Pedro, mas de pedra
Com sangue fértil, vinho generoso
A gerar alma e terra
.

Este post:
- Pertence à série Jardins de Inverno, do Abrupto.
- Foi parcialmente inspirado no post Pequena Vertigem Televisiva, do Da Literatura.
- É dedicado ao bandido que julga que eu gosto de Francesinhas. (Quando vieres ao Porto, e se ainda não tiveres arranjado Ric Hochet, procura na Tintin por Tintin, loja de coleccionismo/Bd na rua da Conceição. É, segundo tenho ouvido, das melhores do país! Tem lá tudo!)

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quinta-feira, janeiro 11, 2007

Aniversários
(Tintin e Bowie)

Retirada de Tintin no país dos Sovietes (1929) Hergé


Quicksand tocada ao vivo por David Bowie e Robert Smith no 50º aniversário de Bowie.

Serve o presente post para celebrar os aniversários de dois amigos de longa data: Tintin e Bowie.
Para o primeiro, 78 anos após o seu nascimento, envio-lhe uma fotografia desse momento mágico, a 10 de Janeiro de 1929, quando a primeira prancha da longa história das Aventuras de Tintin foi colocada no Petit Vingtième, o suplemento infantil de um jornal diário belga, conservador e católico, Le XXª Siècle. Nas vinhetas acima reproduzidas, Tintin parte de comboio para Moscovo onde pretende fazer um trabalho de reportagem sobre o outro lado do muro. Seria a primeira de uma longa série que duraria 54 anos, quando a morte de Hergé deixaria o álbum Alph-Art para sempre inacabado.
Para Bowie, seria natural endereçar-lhe a minha (de quase todos) canção preferida: a Space Oddity. Mas não. A melodia escolhida pertence ao velhinho e mítico Hunky Dory, que, entre outras pérolas, inclui também as populares Changes e Life on Mars?. Esta versão da canção Quicksand foi gravada há dez anos atrás, quando precisamente se celebravam os 50 anos do cantor inglês, nascido David Robert Haywood-Jones, a 8 de Janeiro de 1947, em Londres. A versão está, em minha opinião, sensacional, não só porque a canção é de si magnífica, como inclui a sensibilidade e a profundidade da voz de Smith, normalmente odiada por muitos e fanaticamente idolatrada por poucos (eu faço parte desta horda de loucos).
Parabéns aos meus bons velhos amigos que me acompanham desde a mais tenra adolescência! Muito do que sou também o devo a vós!

Nota:
Depois de tanto aplaudir (e justamente!) a escolha musical do
Francisco Curate, no Daedalus, fico muito sentido que ele ainda não tenha feito o mesmo lá, no sempre interessante cantinho dele, pelas escolhas feitas no Comboio Azul. Até porque desconfio que ele tem gostado! Bandido!

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terça-feira, janeiro 09, 2007

Grandes Vinhetas # 4

Retiradas de "Ric Hochet - Investigação no passado" (1974) Duchâteau & Tibet.

Everyday is like Sunday - Morrissey

Desta vez, em vez de uma, coloco duas vinhetas de um álbum de Bd: "Ric Hochet - Investigação no passado". A razão prende-se com o facto das duas vinhetas funcionarem em conjunto, ainda que no livro estejam separadas por 12 páginas. A primeira, que é também a primeira do álbum, passa-se 35 anos antes do normal desenrolar da história policial que habitualmente acompanha as aventuras de Ric Hochet. Esta personagem, em muitas dimensões parecida com Tintin (repórter, investigador e justiceiro), apareceu nas páginas da revista que leva o nome do menino de Hergé há cinquenta anos atrás, mantendo ainda hoje uma vitalidade invejável, ainda que os seus dois autores já estejam na casa dos 80.
Ric Hochet, que em Portugal, a par de muitos outros heróis da Bd franco-belga, é muito negligenciado, é de uma popularidade extraordinária tanto na França como na Bélgica, como se constata por este mural na Rue du Bon-Secours, em plena capital belga, e pelo facto da estância balnear onde Tibet (o desenhador) passa as suas férias, Roquebrune-sur-Argens na Côte d'Azur, possuir uma Boulevard (Bd.) Ric Hochet.
E é precisamente numa estância balnear (em muito parecida com a referida Roquebrune-sur-Argens) que a acção de "Investigação no passado" decorre, mais propriamente numa tal de Arestat, onde Ric Hochet terá que resolver um caso que mantém relações com um outro que lá havia decorrido em 1938 (os tais 35 anos antes da data de produção da história) com o seu pai por intérprete.
A demanda, sempre interessante e num ritmo que nos mantém presos tira atrás de tira, permite um jogo de confrontação entre os dois momentos cronológicos, quer nos contrastes ténues entre Ric Hochet e seu pai (o que leva o leitor a confundir os dois no início da história), quer nos contrastes territoriais absolutamente perceptíveis e cativantes.
Na verdade, o álbum é uma autêntica aula de geografia urbana histórica aplicada a uma estância balnear, de que as duas vinhetas acima reproduzidas são bem ilustrativas. O mar, que não aparece em nenhuma das duas imagens, sente-se, na segunda vinheta, na presença das gaivotas sobre as escarpas, mas também no crescimento de novos edifícios (dos quais vemos apenas as traseiras) que traduzem uma presença (marítima) forte e atractiva por trás da encosta, assim como no estado de ruína do edificado à medida que a distância ao mar aumenta, em oposição com o que se passava 35 anos antes.
O contraste acentua-se semelhantemente no estado de tempo (quando a vila ainda não seria destino turístico até o clima era agreste...) e nos bólides conduzidos pelo pai na primeira imagem e pelo filho na segunda (o seu famoso Porsche 911 amarelo), mas também no uso da sinalética viária (limite de velocidade 60km/h) e turística (Arestat / A sua praia / O seu casino / O seu picadeiro / As suas falésias), bem como na qualidade infinitamente melhor da estrada. Curiosamente, o dito turismo cultural, que podia ser explorado no velho cruzeiro ou na igreja no cimo do promontório, mantém-se aparentemente esquecido nesta imaginária vila junto ao mar, mais propensa ao turismo balnear.
E é também numa estância balnear que decorre a canção de Morrissey, aludindo a um lugar que apesar do eterno glamour, encanto e apelo de diversão a que está associado, acaba por também redundar em rotina, solidão e miserabilismo no permanente jogo da sazonalidade, que leva o compositor inglês a clamar pela bomba nuclear, hiperbolizando o seu sentimento de angústia.
As cidades costeiras, lugares conhecidos pelo passeio-promenade (ou o calçadão como agora anda na moda dizer), pelos miradouros, pela areia, a água e as cores vivas do Verão, são, no resto do ano, lugares onde se passeiam a desolação, o abandono e as cores cinzentas e amorfas como tão bem Duchâteau e Tibet contrastam nas vinhetas acima ou como Morrissey expõe na sua controversa canção, que inúmeras interpretações tem gerado.

Trudging slowly over wet sand
Back to the bench where your clothes were stolen
This is the coastal town
That they forgot to close down
Armageddon - come Armageddon!
Come, Armageddon! Come!

Everyday is like Sunday
Everyday is silent and grey

Hide on the promenade
Etch a postcard :
"How I Dearly Wish I Was Not Here"
In the seaside town
...that they forgot to bomb
Come, Come, Come - nuclear bomb

Everyday is like Sunday
Everyday is silent and grey

Trudging back over pebbles and sand
And a strange dust lands on your hands
(And on your face...)
(On your face ...)
(On your face ...)
(On your face ...)

Everyday is like Sunday
"Win Yourself A Cheap Tray"
Share some greased tea with me
Everyday is silent and grey

P.S. - Acabo de me recordar de outra canção que aqui poderia ter colocado: Summer's Over dos Rialto. Fica para a próxima.

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sábado, janeiro 06, 2007

Tempo ausente
(Tomo II, velha epígrafe com dedicatória)

Rua de Santa Catarina, no Porto, no anoitecer de 23 de Dezembro de 2006.

Buster - Ooberman

"Sobre o Porto d'aquelle tempo faz-se, para mim, como que um nevoeiro de saudade, atravez do qual vejo passar figuras silenciosas, que já me não podem responder por mais que lhes acene com o lenço branco, humido de lágrimas, com que os que ficam em terra costumam despedir-se dos que partem mar em fóra para uma longa viagem."
Alberto Pimentel (1893) O Porto ha trinta annos.

Este post é dedicado ao Carlos Romão da Cidade Surpreendente, com quem me encontrei no café Asa de Mosca, na passada sexta-feira, por sua iniciativa.
Para além do talento interminável que todos lhe conhecemos, para além da sensibilidade com que nos surpreende na forma como capta instantes da sua (nossa) cidade, pessoalmente o Carlos é de uma gentileza, de uma afabilidade e de uma generosidade absolutamente desconcertantes, que nos conduziu a uma conversa prolongada, ainda assim diminuta, por muitos temas que nos são queridos.
Não sei se levarei muito dos anos que levo disto (leia-se, escrever em blogs), mas por ter conhecido o Carlos Romão já valeu a pena. No meio da conversa, incontornavelmente sobre o Porto, sobre as pontes, sobre o caminho que a nossa cidade toma, sobre a fotografia aérea e sobre o passado da cidade (entre tantos outros temas!), o Carlos teve a amabilidade de me oferecer um livro interessantíssimo, alusivo à construção da Ponte São João de Edgar Cardoso, com quem, nessa altura, o Carlos Romão privou. A obra, que ornamenta agora a minha biblioteca, para além de extremamente bem ilustrada (contendo inclusivamente uma fotografia inédita de 1888, de George Tait) tem me ensinado muito sobre o Porto, em particular sobre a história das suas pontes.
Ao Carlos ofereci um mísero café (ou foi pingo? já nem sei...) e a promessa de um livro num futuro que espero próximo. Cumprirei a promessa e, pelo caminho, fica aqui uma fotografia dedicada ao Blog Cidade Surpreendente, baluarte da cidade do Porto na blogosfera, captada ainda sem o tripé que o Carlos me aconselhou.
Obrigado, Carlos.

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quinta-feira, janeiro 04, 2007

Tempo ausente
(terminado, com epígrafe alterada)

O mercado do Bolhão ao princípio da noite, visto a partir da entrada por Fernandes Tomás, na antevéspera de Natal.

Remember - Air

"Em vez de reflectir no que convém que faça, vivo sob a influência dos acontecimentos consumados, preso ainda no recente turbilhão que me arremessou para longe do meu centro natural... De resto, talvez eu chegue a ver claro no futuro se conseguir dar-me conta da vida que vivi durante todo o mês passado."
Fiodor Dostoievski (1867) O Jogador.

Nas ruas, o burburinho surdo, confuso, quase tenso perpassa veloz entre a multidão no formigueiro de Santa Catarina, ali mesmo ao lado. Na varanda do Bolhão, ele ecoa distante na triste cadência das luzes que se acendem e intensificam à medida que o céu se enegrece para a noite. No ar, por esta altura, entre o leve odor a canela e a mel, sente-se a cumplicidade entre os pares que rastejam endiabrados e inebriados, de loja em loja, à procura de soluções para a demanda de presentes da noite que se aproxima, e a angústia entre os ímpares que procuram um aconchego numa carteira alheia ou numa esmola perdida por um qualquer indivíduo enternecido pela quadra.
No Bolhão, o ritmo abranda. As últimas vendedoras arrumam as mercadorias enquanto mercadejam uma última fruta, entre os talos de couve e as escamas de peixe no chão, provavelmente ocupadas a magicar entre o que farão para o jantar e as derradeiras lembranças a comprar no caminho para casa.
Em tempos, o lameiro criado pela enorme bolha de água que ainda alimenta o chafariz lá em baixo (e de onde deriva o nome Bolhão), vivia gelado em Dezembro numa velha quinta periférica à cidade. Após o Cerco, o higienismo de XIX tentou eliminar as pequenas feiras que se faziam por toda a cidade, para que estas se concentrassem nos novos mercados do Anjo (onde actualmente jaz, inerte e vazio, o Clérigos Shopping) e do Bolhão.
Na altura, e até à década de 20 do século passado, o mercado do Bolhão era um espaço rectangular aberto, rodeado por um gradeamento semelhante ao que, ainda hoje em dia, cerca o jardim de São Lázaro, colocado aproximadamente na mesma altura. Através da acção do tempestuoso Elísio de Melo, foi erguido, há cerca de 80 anos atrás, o belo edifício do mercado, marcado pelos elegantes torreões arredondados, e pela vida comercial que, passo a passo, foi envelhecendo sem renovação (nas pedras e nas gentes), à imagem da própria cidade que o mercado abastece.
Em silêncio, gelado e incandescido pelas luzes que piscam nas ruas da cidade, capto o instante na minha máquina, para que aquele frenesim pré-Natal (o meu São João de Inverno) não se apague jamais da minha memória. O consumismo Natalício é mal menor perante o abandono cruel e duro dos restantes dias escuros, do ano que aí vem.

Extra:
1 - Dar os parabéns (atrasados!) ao
Da Literatura pelos dois anos de idade de textos de uma qualidade inquestionável e oferecer solidariedade neste combate.
2 - Destacar mais
uma excelente fotografia Patchouly no Não sei pra mais.
3 - Aplaudir
a crítica a uma das mulheres mais insuportáveis do planeta, no Portugal dos Pequeninos.
4 - E satirizar o
questionário do Corta-Fitas sobre quem vai ser o próximo presidente do FCP. Falta aí o mais que provável Antero Henriques, meus amigos...

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terça-feira, janeiro 02, 2007

Grandes Vinhetas # 3

Retirada de "As Jóias da Castafiori" (1963) Hergé.

You and me song - The Wannadies

Volto a utilizar a última vinheta de um álbum como uma das minhas preferidas. E a escolha foi difícil... em As Jóias da Castafiore os desenhos de Hergé são quase todos simbólicos: o olhar de Haddock pelo espelho, em direcção à cantora italiana; a colocação dos ciganos nos jardins do palácio; a investigação de Tintin no sótão de Moulinsart; ou as lágrimas generalizadas no fim do visionamento da televisão do professor Girassol (lágrimas essas que determinados autores acreditam serem ainda consequência da última vinheta do álbum anterior, Tintin no Tibete, que curiosamente abordei no último post da série Grandes Vinhetas).
A vinheta é, tal como a anterior, pouco ortodoxa. Não é oval, ainda que as referências ao ovo sejam permanentes ao longo do livro (afinal, a própria jóia é uma gema de esmeralda oval), mas rectangularmente rodeada por pássaros.
Um mocho, uma pêga e um papagaio juntos. A presença dos pássaros na obra de Hergé é transversal. Não há qualquer álbum em que eles não apareçam. Na verdade, os pássaros aparecem, por vezes, como contorno fundamental da trama: os irmãos Pardal, no Segredo do Licorne, ou o Pelicano do Ceptro de Ottokar, entre muitos outros. Estes três, contudo, já não são novidade para os leitores das Aventuras de Tintin. Papagaios são presença constante ao longo da série, evocando quase sempre os antepassados de Haddock, através da repetição dos impropérios: "raios e trovões" ou "com mil milhões de macacos" (não será o Yeti, do já referido último post, também um grande macaco?). A pêga já havia aparecido no álbum Ilha Negra onde, à imagem do As Jóias da Castafiore, pratica um roubo que ajuda ao desenvolvimento da história... curiosamente a ária, que Castafiore vai interpretar a Milão, dá pelo nome de "La Gazza Ladra". E finalmente o mocho, que habita no sótão, local privilegiado de memórias, mistérios e segredos.
São três pássaros como eram três Licornes que deviam estar "unydos". Mas foi no quarto degrau que Haddock tropeçou, como era a quarta a dinastia Ottokar.
Para mim, longe de conjecturar qualquer lógica mais complexa enquanto criança, esta vinheta representava sempre uma boa gargalhada e, em dias mais cinzentos, o valor da amizade e da lealdade.
A canção (ultra-melódica) também fala sobre isto. De como aqueles (os poucos...) que nos acompanham eternamente e nos auxiliam nos nossos tombos incontornáveis são aqueles que mais amamos, pelas pequenas doçuras que a rotina da vida nos oferece em conjunto.
Obrigado, Tintin e Nestor, por me terem sempre amparado nas quedas.

You tell me I'm a real man
And try to look impressed
Not very convincing
But you know I love it

Then we watch TV
Until we fall asleep
Not very exciting
But it's you and me
And we'll always be together

You and me - always - and forever
You and me - always - and forever

Queria acrescentar apenas que:
1 - Este post também é adaptado de
um outro muito semelhante que escrevi em Maio de 2004, no extinto Avenida dos Aliados.
2 - Vale a pena espreitar estas fotografias muito interessantes da série Sombras, no Linear P.
3 - Descobri na blogosfera alguém que me aturou durante umas horas ao longo de vários dias, há alguns anos atrás, no E as Fadas... também se enganam no Caminho?
4 - Este post na Rua da Judiaria, sobre a vida do Capitão Barros Bastos, no Porto da primeira metade do século passado, é mais um excelente contributo histórico daquela morada.

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