O café "Asa de Mosca", no gaveto das ruas do Duque da Terceira e do Conde Ferreira, no passado sábado à noite, no Porto.
Quando os romanos pretendiam construir uma nova cidade, o seu ritual de fundação consistia na abertura de um sulco em torno do espaço onde iria nascer o novo aglomerado, através de um arado em bronze puxado por um casal de bovinos brancos. No sulco era colocado um punhado de terra do solo onde jaziam os seus antepassados, transformando o novo território em Terra Patrum. Essa nova área delimitada, consagrada a um deus, reproduzia, em micro escala, o próprio mundo que a rodeava.
Sentado naquele café, olhando, ao invés da fotografia, de dentro para fora, o mundo navega à velocidade do vento e agita as folhas dos castanheiros-da-Índia e das tílias, espelhando-se sucessivamente nos vidros largos e transparentes.
Ali quieto, o tempo pára no meu relógio, enquanto assisto em deleite ao ritmo nunca intenso do movimento exterior. A dimensão das janelas, absurda mas nunca excessivamente grande, permite uma leitura completa do que se passa lá fora, exceptuando na compreensão dúbia dos reflexos que, não poucas vezes, iludem-me na percepção de conversas a que assisto imaginariamente em surdina, entre quem passa lá fora e aqueles que, sentados como eu, desfrutam do melhor café do Porto, sem soltar palavra.
Ao final da tarde então, tudo se torna mais intenso. À medida que o Sol vai reflectindo torrado nos azulejos "brasileiros" de mil cores, que ocupam as fachadas vizinhas, aumentam as ilusões e os jogos de espelho que baralham o meu mundo. O branco, o negro e o cinzento, que decoram o interior do café, ganham força entre as cores que emanam do exterior, sugando o que delas se extrai, entre o semicerrar de pálpebras e a perplexidade de uma descoberta.
É estranho, contudo, que num café feito de vidro tão límpido dominem as sombras enigmáticas, e que num espaço marcado a cinzentos desbotados (à excepção do néon kitsch que decora uma das pequenas paredes opacas da sala) a cor ameace sempre invadir e se instalar.
O café é, aliás, todo ele, um paradoxo confuso.
É um espaço onde circulam juízes mediáticos e prostitutas que labutam em concorrência acesa nas ruas vizinhas.
É um lugar onde convivem os mais elitistas betos formados em gestão, que descem em sorrisos da escola de Línguas num piso superior, e artistas de roupagem anarquista e rebelde, atirados pela próxima Faculdade de Belas Artes.
É um café que abriga a rapaziada saída do liceu Alexandre Herculano, de calças rasgadas, brincos nas orelhas e boné na cabeça, e os mais respeitosos e bem tratados idosos, sempre acompanhados por um Eça, um Camilo ou um Jorge Amado pela mão.
É um centro vivo, no miolo da cidade que dizem morta.
Um aeroporto onde se ouve o inglês dos professores estrangeiros e aquela pronúncia do Porto, inconfundível e melódica.
Um recanto da modernidade envidraçada de Corbusier, mas com um painel exterior onde a palavra mosca ainda leva circunflexo na primeira sílaba.
Mas é também um café de amigos que não se cumprimentam, ainda que todos se reconheçam, ali ou em qualquer outro lugar, e que em comum têm o facto de tratarem o café pelo seu primeiro nome - Asa. O Asa.
O nome – Asa de Mosca – é desde logo um nome estranho, entre o horror e a atracção. Dizem os mais antigos (que nunca serão assim tão antigos porque o café tem cerca de 40 anos) que tudo deriva de um jogo de póquer onde "Asa de Mosca" é um tipo mais complexo de sequência de cartas e cores. Será. Até porque o café ainda é muito do que era na minha infância. Nesses tempos, corria desenfreado, para preocupação dos meus pais, em Domingos de visita à minha saudosa avó, por entre as cadeiras e as mesas escuras, em ziguezagues nas pernas dos empregados de mesa, em direcção aos posters e revistas, aos brinquedos e gelados, às guloseimas e sei lá mais o quê que se vendia no quiosque do canto do café e que entretanto desapareceu.
Lá, nesse mesmo canto, onde as sombras enigmáticas são mais ocultas, sobra ainda o velho painel em relevo das duas pombas brancas sobre fundo negro, que se afastam melancolicamente uma da outra, tal como eu observo as vidas se apartarem, através das janelas do café. Meras ilusões vãs ou memórias de um tempo que nunca houve, num recanto escuro do quiosque confuso e atafulhado que ainda habita em mim.
Aquelas janelas, de reflexos intensos, de luz e sombra, aquelas transparentes e ilusórias janelas são o sulco onde fundei a minha vida.